São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

Procuro na memória e não encontro um único dia em minha vida em que não tenha vivido alguma espécie de drama erótico
Continuação da pág. 6-6
No decorrer dos últimos 40 anos, com alguns intervalos, estive em moda em Nova York por conta desta irresistibilidade. Era muito "in" estar "apaixonado" por mim. As outras pessoas ganhavam prêmios literários e distinções acadêmicas. Quanto a mim, eu discriminava emoções e pretendentes –e julgava suas qualidades como pessoas, julgava-lhes o cheiro, a inteligência, o humor, a capacidade de emocionar-se, a inteligência emocional. Sempre fui dotado, num grau explosivo, de uma espécie de cidadania emocional, a capacidade de ser bem recebido sem nada ter feito para merecê-lo. Eu via esta absurda irresistibilidade como uma espécie de comédia, uma piada sem sentido. Estou tentando definir a natureza da tentação que foi oferecida à criança e pela criança, depois o adolescente, depois o jovem em Nova York que agora é o homem envelhecido e aidético.
Quando um homem me "amava", era como se estivesse roubando numa partida de croqué, só que a quadra de croqué era o meu corpo, um curioso playground. Você se faz de bobo, finge ser respeitável, mas na verdade você já é puta velha nesse jogo. Visto de fora, você pode parecer uma pessoa distinta, até puritana. Ninguém é obrigado a admitir que você é um sujeito desse tipo. Os que ficam obcecados com você fazem questão de dizer que você não tem nada de especial, é até feio –seu dia-a-dia tem sempre um certo toque de melodrama. Ah, os telefonemas agressivos. Procuro na memória e não encontro um único dia em minha vida em que não tenha havido algum drama erótico. É possível que eu não tenha vivido um único dia livre dessas coisas. E o modo como você arca com essa história de vida –seja sutil ou direto– empresta-lhe algo muito semelhante à beleza, qualquer que seja a sua história de vida, qualquer que seja a sua aparência física. Talvez seja mesmo beleza, a coragem de ter vivido de algum modo, com todas as dificuldades.

Mas o grande drama de minha adolescência foi o fato de que meu pai adotivo, Joe Brodkey, que era cardíaco (um homem doente e belo, como um personagem de romance pornográfico), durante dois anos assediou-me sexualmente todos os dias –duas vezes por dia, todas as manhãs e todas as noites, dos meus 12 aos 13 anos de idade. Realmente, ele não tinha mais o que fazer. Estava doente. Nós não tínhamos o mesmo sangue. Estou sendo muito tímido. Ele jamais conseguiu penetrar-me, mas a coisa me assustava, me deixava coberto de suor. Só que ele estava morrendo, o que o tornava uma figura patética. E, além disso, eu tinha minha longa e tediosa trajetória de irresistibilidade. E minha mente estava o tempo todo atenta para tudo que acontecia. Meu pai adotivo tinha pressão alta, o que o tornava frágil. Minha força e minha mobilidade impediam que acontecesse muita coisa, que aquilo terminasse com um algum desfecho dramático.
Estou mentindo. Não havia como não perceber que ele sofria –de paixão; estava claramente apaixonado, de algum modo. E logo, não sei como, porque eu não reagia agressivamente àquele assédio, um monte de gente ficou sabendo daquele "caso de amor". Creio que minha mãe tinha lá seus motivos para comentar o assunto. Dizia coisas do tipo "ele não pode viver sem você", "ele está caidinho, você pode fazer o que quiser com ele, fale com ele por mim". E ele mesmo tocava no assunto –meu pai tinha umas idéias um tanto oitocentistas a respeito da família e dos direitos do patriarca.
Eu não confessava nada. Não me queixava a ninguém. Minha mãe, que estava com câncer e vivia drogada, me alertava, em tom oracular: "Se eu fosse você, eu aprendia a calar o bico". Sem querer insultar a memória de minha mãe, aquela situação a excitava, a inspirava; não precisava ser muito perceptivo para ver que aquilo ajudava a manter os dois vivos: aquele caso "amoroso" interessava a ambos.
Os assédios de Joe tinham o componente de querer me humilhar, mas havia momentos em que tudo convergia, como no desfecho de uma narrativa, numa preocupação séria com a criatura à qual minha identidade estava presa no momento. Meus pais seriam ambos capazes de matar um ao outro por mim. Às vezes brigavam por mim, e a briga parecia ser do tipo que pode até acabar em morte –estas coisas não são muito raras, não é verdade? Minha mãe me aconselhava: "Quando você é obrigado a dizer não, você deixa de ser bonzinho". Eu era "um rapazinho muito simpático" (o que não era de todo verdade; eu era um bocado estranho), "um rapaz que tem um belo sorriso, na minha opinião". Dizia também: "A gente se vira com o que tem". Eram essas as únicas peças com que ela podia jogar, no tabuleiro do tédio terminal de sua vida.
Mas para mim havia episódios dramáticos, havia perseguições. E estes assédios, tão estranhos, cômicos ou loucos, melancólicos ou perigosos, ocorriam em todos os lugares, como se por contágio –com os meus companheiros do time de futebol, com velhos amigos, com as mães dos meus amigos, com desconhecidos. Uma vez quase chegaram a me sequestrar, obrigaram-me a entrar num carro, mas lutei, argumentei e consegui fugir. Na escola, meu Deus, as garotas ficavam me esperando na entrada, ou na rua quando o tempo estava bom. Era comum eu me ver cercado de colegas nos corredores, e duas vezes no mesmo ano, quatro vezes ao todo, mães de meninas que haviam tentado se aproximar de mim sem êxito foram se queixar ao diretor que eu havia magoado suas filhas –não haveria um jeito de fazer-me gostar delas? Telefonavam para meus pais, conversavam com eles. Fosse o que fosse, eu não era propriedade privada minha. Era assim, por este ângulo, que eu encarava o comportamento de meu pai.

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