São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

Meu pai me amaldiçoou; agora vou morrer desfigurado e sofrendo dores atrozes

Um dos problemas da realidade da passagem do tempo é que é possível mentir sobre o passado. Podem-se inventar precedentes falsos. Podem-se omitir realidades indesejadas, por cálculo. A coisa em si, o assédio sexual, começou quando o menino confortava seu pai –numa ocasião, pegou-o no colo e embalou-o–, um homem de 44 anos, quando este era presa de um acesso de pavor ou raiva provocado pela expectativa da morte. O que definia a vida era, talvez, o código de comportamento. Eu começava a rir e a aceitar um abraço, como se fosse uma criança pequena –e de repente o interrompia. É o juízo moral que leva você a recusar seu pai, muito embora ele esteja morrendo. Esta recusa é uma atitude arrogante, dirigida contra o pai. Ou, pelo menos, ela empresta um valor positivo à sua própria vida. Ignorar os sentimentos que você desperta é a mesma coisa que narcisismo, do ponto de vista da pessoa que quer a sua atenção. Não estou me queixando. Eu percebia que a negação da verdade era aquilo que todo mundo denominava tato. Meu pai me amaldiçoou. Agora vou morrer desfigurado e sofrendo dores atrozes.
Para poder contar um pouco da história de meu pai e eu com menos timidez, seria necessário mudar meu modo de escrever. Na vida real, tive experiências homossexuais para quebrar meu orgulho e abrir-me para essa história.

Remédios, força de vontade e sorte. Barry e Ellen. Não morri. Nem sequer tive que ir para a UTI. Fora do hospital, a luz tinha um peso específico; eu piscava, recolhia-me. Os barulhos da rua, ruídos urbanos, voavam à minha volta, arranhavam-me. Eu me esforçava para controlar a respiração. E foi tal como Barry dissera: eu não sabia o quanto eu estava doente. Sabia que estava morrendo, mas não que estava tão mal.
Eu tinha a impressão de estar me dissolvendo no espaço que se abria a meu redor. Dentro do táxi, de tal modo me confundiam as flutuações de minha consciência– a East Seventy-second Street, na Madison Avenue, na West Eighty-sixth Street, onde os prédios de arenito de início me pareceram úmidos, depois diáfanos –que eu me sentia mais prisioneiro de minha própria fraqueza do que antes, no hospital, obedecendo à rotina hospitalar. Irritava-me a toda hora perder a consciência e voltar a mim, sentindo o fedor da cidade, enquanto o táxi sacolejava. Eu mantinha o tronco ereto. Ellen, com uma expressão rígida no rosto, falava animadamente a meu lado. "Não consigo falar", cochichei. Ela tomou-me a mão.
A meio caminho de casa, o mal-estar causado pelo cansaço foi tamanho que lágrimas de dor vieram-me aos olhos. Eu não queria admitir que tinha sido um erro forçar Barry a me dar alta alguns dias antes do tempo. Exclamei, no mínimo meia dúzia de vezes: "Ah, como é bom sair do hospital!" Depois desisti e perguntei a Ellen se ela estava aguentando, se aquilo era demais para ela. Se ela tivesse respondido que era, eu teria voltado atrás. Ellen disse que estava tudo bem.
Conseguimos –consegui– aguentar até chegar em casa: deitei-me com roupa e tudo. Ellen me despiu, pegou os remédios e o caderno no qual iria anotar todos os meus sintomas e as horas em que eu devia tomar cada remédio. Cochilei e acordei, porém sentindo-me mal; o sono não havia me reconfortado –e é terrível, é como despencar da beira do mundo, se dar conta de que o sono não tem mais o efeito de reconfortar. Fui andando, me esgueirando, rastejando, até o aparelho de som, no quarto escurecido, e pus para tocar uma partita de Bach; a música me pareceu áspera. Eu dormia, e sempre acordava me sentindo cansado, às vezes com a música tocando. Passava boa parte do tempo simplesmente ouvindo os ruídos da rua ao longe, o som de Ellen indo e vindo.
Doente e fraco, todos os dias, pela manhã, durante uma hora ou um pouco mais, eu fazia um esforço e trabalhava na versão final de um livro que escrevi sobre Veneza. Com a pele vermelha e cheia de manchas (reação alérgica aos remédios), eu trabalhava, e enquanto trabalhava não sentia nada, a não ser uma certa fraqueza mental e um pouco de náusea. Isto é, não sentia nenhuma reação à minha história, ao meu texto; era necessário utilizar as reações guardadas na memória.
Às vezes não conseguia trabalhar, não conseguia me concentrar, e chorava, mas só um pouco, e voltava para a cama; ou então, quando estava trabalhando na cama, cobria os olhos com as mãos e ficava imóvel, respirando, cochilava e depois tenta retomar o trabalho. Tenho que reconhecer que me sentia mesmo amaldiçoado. Minha mãe, minha mãe verdadeira, morreu –segundo as histórias da família– por causa de uma praga lançada sobre ela pelo pai, um rabino milagroso. Pouco depois de eu completar dois anos de idade, ela morreu, de uma morte dolorosa, após uma agonia que durou meses, de peritonite causada por um aborto malfeito, segundo algumas versões, ou de câncer, segundo outras. Então Doris –prima de meu pai– e Joe vieram me buscar, para depois adotar-me.
Contaram-me que uma vez Doris me levou ao hospital para ver minha mãe e que eu não aceitei seu abraço, preferindo ficar agarrado a Doris, que estava perfumada; ao que parecia, o menino não se lembrava mais da mãe moribunda. (Talvez fosse este meu verdadeiro crime, e não minha insensibilidade em relação a Joe). Assim, enquanto tentava calcular de quem era mais provável que eu houvesse pegado Aids, comecei a sucumbir à idéia da maldição, a idéia de que eu fazia parte de uma história familiar de sofrimentos e horrores infindáveis.
A cada dia sentia-me pior, quase como se, com o fim da situação de emergência, as forças que eu havia mobilizado também tivessem se extinguido. Uma doença interminável sem morte é uma coisa pior do que eu antes seria capaz de imaginar.

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