São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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O FUTURO DO PT

Tomará iniciativas vistosas de ativismo e autonomia nacionais no plano da política externa enquanto trata de desmontar de fato os resquícios da nossa rebeldia nacional contra a nova ordem mundial e o ideário que nela se tornou dominante.
A alternativa que faltou na campanha de 1994, e que será necessário no confronto com o novo governo, tem de insistir na idéia da democratização simultânea do Estado e da economia de mercado. A economia democratizada de mercado num Brasil que deixou de ser dualista deve ser o seu compromisso norteador. Para afirmá-lo, o PT precisa desmontar o discurso corporativo-assistencial em que se viciou.
No lugar da idéia da negociação entre os grandes interesses organizados do primeiro Brasil, o que importa é a guerra contra os privilégios e os oligopólios e a formação de parcerias descentralizadas e participativas entre os governos e as firmas privadas. A preocupação central destas parcerias deve ser a de consolidar, dentro e fora do setor público, uma vanguarda econômica, tecnológica e cultural que atenda as necessidades de produção e de consumo da nossa vasta retaguarda econômica. No lugar do enfoque na miséria e na insegurança do povão –que todas as forças políticas brasileiras alegam compartilhar– o que importa é propor um sistema tributário e uma reconstrução das relações entre governos e empresas que comprimam de forma duradoura a hierarquia dos padrões de vida e libertem o dinamismo experimentalista do povo brasileiro.
Estes substitutos do discurso corporativo e assistencial precisam, por sua vez, repousar numa visão clara das exigências essenciais da emancipação cultural do povo e da mobilização popular institucionalizada e permanente. Esta visão opõe-se dentro das esquerdas e do PT, à contrapartida política do discurso corporativo e assistencial: o gosto pelas causas jurídico-liberais –parlamentarismo, pluralismo sindical e voto facultativo.
Em condições tão desiguais como as nossas, a promoção destas causas significaria dar ao primeiro Brasil um microfone e ao segundo uma mordaça. Não há política de mudança estrutural que não seja uma política de alta energia. O problema é identificar e estabelecer as instituições que dêem sobrevida e normalidade ao que de outro modo seriam momentos efêmeros de entusiasmo e esperança. Não haveremos de encontrá-las na agenda tradicional do liberalismo.
Emancipação cultural do povo significa investir na educação pública que seja não só acessível a todos mas também acessível a todas as idades e que ponha a conquista de capacidades de fazer a apreender no lugar da memorização passiva. Significa também propor alternativas aos oligopólios da informação e da diversão que não regridam a fórmulas estatistas.
Mobilização institucionalizada e permanente do povo requer, num primeiro passo, diminuir abruptamente a influência do dinheiro sobre a política pelo financiamento público das campanhas eleitorais. Exige transformar o presidencialismo brasileiro numa máquina para a prática frequente de reformas estruturais. O caminho para isso é manter a grande alavanca desestabilizadora da eleição presidencial enquanto se criam os mecanismos, tais como plebiscitos ou referendos e poderes de convocação de eleições antecipadas, que engagem o eleitorado na pronta resolução dos impasses de poder.
O bloqueio imaginativo que continuar a negar ao PT clareza sobre um programa transformador como este está ligado ao problema congênito e central do partido: a ambivalência sobre o papel dos organizados num mundo de desorganizados e sobre o destino do primeiro Brasil –o Brasil arrumado e europeizado– dentro do Brasil todo.
As tendências internas do PT são, de forma geral, irrelevantes ou antagônicas à tarefa de imaginar e sustentar um tal programa. Estão em outra, preocupadas em moderarem ou extremarem o discurso redistributivista. Continuam, portanto, mais ou menos equidistantes dos problemas reais do país. Tanto sabem e sabiam disso as lideranças nacionais do PT que, no auge das pesquisas favoráveis, davam a impressão de que tanto tinham medo de ganhar quanto tinham medo de perder as eleições de 3 de outubro de 1994.
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Falhas de visão programática estão na raiz do segundo conjunto de erros cometidos pelo PT na campanha de 1994 –erros de estratégia. Os equívocos estratégicos são graves justamente porque não resultam de cálculos casualmente enganados; vinculam-se à desorientação programática.
Uma reflexão sobre a estratégia da campanha de 1994 deve começar com um esforço para resolver um paradoxo aparente. De um lado, o PT é acusado de não ter cultivado alianças e de se haver isolado na luta pelo poder central. Os apelos aos partidos nanicos da esquerda e aos dissidentes do PDT e do PMDB apenas confirmam a realidade do isolamento ao qual não ofereciam uma alternativa substancial. De outro lado, porém, o PT também conduziu uma política de busca sistemática da respeitabilidade. No início da campanha, Lula deu sinais de que repetiria o erro estratégico de Brizola no começo da campanha de 1989: conduzir-se como se já fosse capitão do povo e pudesse se dar ao luxo de negociar os votos das elites. É uma concepção que confunde fatalmente duas fases da luta: primeiro, é preciso ganhar para, depois, numa posição de força, negociar.
Foi assim que, meses a fio, ficou o PT negociando com o PSDB, um partido que, conforme diziam seus dirigentes a quem tivesse ouvidos para ouvir, queria desde o começo apresentar-se ao país como a alternativa providencial ao PT. Foi assim que se sucederam numerosas conversas com empresários nas quais as recaídas de autenticidade se revezavam com os protestos de confiabilidade. Foi assim que o candidato viajou aos Estados Unidos e à Alemanha para assegurar aos americanos e aos alemães que, no fundo, só queria resolver o problema dos pobres e que nada tinham a temer dele. Foi assim que na hora do programa de televisão prevaleceu a estética da sofisticação e do xarope, fazendo com que Lula aparecesse, desde as palavras até o terno, como um candidato produzido. Com a notável exceção das caravanas –a inovação mais importante da campanha– conduziu-se o PT como se estivesse decidido a dar credibilidade à pirraça de Darcy Ribeiro: a esquerda de que a direita gosta. Ao que se poderia acrescentar: gosta mas não vota.
Como, então, acusar o PT simultaneamente de se haver isolado e de se haver entregue à busca inútil do charme e da cordialidade? As duas coisas não só são compatíveis como também se reforçam reciprocamente. Por não haver sabido ampliar a unidade no plano das forças de esquerda e das classes trabalhadoras e pequeno-burguesas, o PT procurou um substituto desta unidade na campanha pela respeitabilidade. Esta campanha, porém, estava e está fadada a malograr, bloqueando ainda mais o caminho da unidade popular sem render os resultados práticos esperados.
Ampliação da base popular significa em termos sociais a abertura ao Brasil majoritário e não-corporativo e o distanciamento arrojado dos interesses e dos preconceitos do Brasil corporativo. Ampliação da base popular significa em termos de idéias o abandono do discurso corporativo-assistencial e sua substituição por um discurso de reconstrução institucional como aquele que antes esbocei. Ampliação da base popular significa em termos políticos e partidários a busca da fusão com os segmentos da esquerda brasileira que contestam o PT, especialmente o PDT, e a imposição de disciplina partidária às secções regionais do PT que dificultem esta união.
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Pior ainda do que para o PT foi a eleição de 1994 para o PDT. Não é só que Brizola, o nosso patriota mais intransigente, houvesse afundado, sem saber furar o bloqueio da mídia nem reinventar uma mensagem de que o país cansou. É que, como resultado do pleito, três tendências ganharam força no PDT: a tendência dos oportunistas deslumbrados, a tendência dos conservadores honestos e a tendência dos conservadores bandidos. Nada disto, porém, deve alegrar o PT. Não só ajudou a negar à esquerda um segundo turno presidencial como também e sobretudo complicou o caminho indispensável da convergência.
Se o PDT não existisse seria preciso inventá-lo. Originando-se numa encarnação histórica anterior do mundo corporativo-estatal a que o PT continua agarrado, ele avançou lentamente em direção ao outro Brasil: o Brasil do povão desorganizado e das pequenas classes médias patrióticas, ressentidas e marginalizadas. Por isso mesmo, cultivou preocupações que o PT subordinou: com a autonomia da nação e do seu projeto de desenvolvimento, com o uso do Estado e do setor público para tacar o dualismo e com a emancipação cultural do povo, vitimado pela ignorância e pela televisão. Por isso mesmo, também, permaneceu imune à propaganda jurídico-liberal do pluralismo sindical, do parlamentarismo e do voto facultativo, que perigosamente seduziu as lideranças do PT.
O problema hoje é que temos duas esquerdas, exprimindo confusamente uma divisão social e cultural que a esquerda brasileira unida deveria ter por tarefa superar. Por estarem contrapostas, as duas esquerdas acabam sendo partes do problema em vez de serem partes da solução. Agora precisamos de magnanimidade e clarividência para aprender a lição penosa dos fatos.
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Que fazer?
Primeiro, dissolver todas as tendências internas constituídas do PT. Estão organizadas em torno de um equívoco, que é o grau relativo de moderação e radicalismo nas reivindicações redistribuidoras. Dentro desta carroceria falta a máquina, que é o projeto de reconstrução institucional e de crescimento econômico. Ademais, tal como hoje praticadas, estas tendências ajudam a compor o clima da política estudantil a que o país tem ojeriza.
Segundo, distanciar-se dos compromissos corporativos desde o discurso das câmaras setoriais até a intimidade irrestrita com os sindicatos pequeno-burguesas de funcionários públicos e de operários relativamente privilegiados.
Terceiro, desenvolver uma alternativa clara ao discurso corporativo-assistencial: um discurso que, como a argumentação anterior exemplifica, enfrente o dualismo e responda às exigências do Brasil não-corporativo, que quer um futuro diferente da assimilação ao Brasil corporativo.
Quarto, aprofundar a prática organizadora, mas sem deixar que substitua as propostas feitas para uma sociedade que continuará a ser, como são todas as sociedades, desigualmente organizada e sem esquecer a advertência de Oscar Wilde de que o problema do socialismo é que tem reunião demais.
Quinto, cultivar lideranças nacionais, eventualmente capazes de substituírem Lula, que não se enquadrem em nenhuma das duas categorias seguintes: (1) a esquerda de que a direita gosta ("modernos", linguagem vaga social-democrata, gosto pelo parlamentarismo e outras causas do udenismo de esquerda); (2) a esquerda de que a esquerda gosta (caretas, estatistas que perderam fé no Estado, políticos estudantis envelhecidos). Procurar a esquerda de que o povão e os assalariados possam gostar. As preferências do próprio Lula devem pesar quase nada.
Sexto, buscar imediatamente a fusão com o PDT e atacar de frente os que dentro do PT de cada estado da federação sacrificam a causa nacional ao jogo das rivalidades e dos preconceitos.
Impossível? Claro que é impossível. Porém, é necessário. Quando o necessário é impossível, o jeito é buscar a melhor aproximação que as circunstâncias, empurradas por uma vontade forte, possam permitir.
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Se o raciocínio parasse aí, numa série de críticas e de propostas, estaria ainda faltando o essencial, que só a generosidade no julgamento pode revelar. A campanha de 1994, que terminou em desapontamento para a esquerda e que mostrou a vulnerabilidade persistente do povo brasileiro, foi, apesar de tudo, um momento esclarecedor na história do país.
Há duas maneiras que uma política transformadora se pode desvirtuar. Uma é entregar-se inteiramente à máxima de Bismarck segundo a qual a "política é a arte do possível". Quem respeita sempre os limites do possível e cultiva a imagem do realista acaba prisioneiro do sistema atual de interesses e preconceitos. Submete-se, como tem feito a generalidade dos partidos socialistas e trabalhistas nas democracias ricas do Ocidente. Procura apenas humanizar a ordem existente. Não tenta reinventá-la. Mas quem perde contato com as realidades refratárias e obscuras desorienta-se no vácuo das utopias soltas.
Foi o que fizeram, no decurso do século 20, as esquerdas sectárias e revolucionárias. São poucos os exemplos que temos tido no século 20 de uma esquerda que, percorrendo o caminho estreito entre estes dois perigos contrapostos, haja insistido em testar os limites do possível. O PDT –não o PT das reivindicações corporativas, do discurso corporativo-assistencial e das simpatias criptoliberais senão o PT das caravanas e da prática organizadora– tem sido um destes exemplos.
Por isso, o PT já demonstrou que tem potencial para transformar o país. Dissipará este potencial se não se transformar a si mesmo.

ROBERT MANGABEIRA UNGER é professor de direito na Universidade de Harvard (EUA) e membro da Academia Americana de Artes e Ciências, é filiado ao PDT

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