São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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O FUTURO DO PT

ROBERTO MANGABEIRA UNGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 15/11/94

Este artigo, de Roberto Unger Mangabeira, não foi escrito especialmente para a Folha.
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Erramos: 19/11/94
Neste artigo, devido a um erro de digitação, onde saiu publicado "O PDT - não o PT das reinvidicações corporativas...", leia-se "O PT - não o PT das reinvidicações corporativas..."
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O PT deu forma decisiva à eleição de 1994, só não foi a forma que quis. Foi só por causa do pavor que causava à direita e à plutocracia brasileiras a possibilidade da eleição de Lula que estas foram agarrar-se ao PSDB e a Fernando Henrique Cardoso. Nisto, porém, o PT apenas desempenhou o papel mais corriqueiro da esquerda na política moderna: o de espantalho.
O espantalho leva os políticos conservadores, os grandes proprietários, os magnatas da mídia e as pequenas burguesias amedrontadas a transigirem com um reformismo de centro. O parceiro do espantalho é o semi-reformista ou o pseudo-reformista. Tal como o pragmático que agora se elegeu presidente, ele vira para um lado e diz: "Deixem comigo que eu salvo vocês". Vira para o outro lado e diz: "Eu sempre fui politicamente correto; eu sou a mudança viável. O resto é utopia".
Uma parte do povão sussurrava para o PT: "Nós desconfiamos de vocês porque o seu candidato se parece conosco. Não tem gabarito para ser presidente. Vocês dizem que são povo, mas o que a gente vê mesmo é muito aparelho e muito funcionário público e empregado de estatal no meio de vocês. Já que a promoção deste pessoal só vai piorar o negócio para nós, e já que pelo menos nos deram agora uma moeda que não derrete no bolso, vamos esquecer de política e tratar das nossas vidas". A frieza popular foi o traço definidor da campanha de 1994.
Enquanto isso as classes proprietárias sopravam: "Vocês já são bem melhores do que eram, mais responsáveis, mais maduros. Sorriam mais para a gente, só um pouquinho mais, que, quem sabe, deixamos vocês entrarem na sala. Aliás, o seu segundo candidato a vice-presidente é até melhor do que o seu candidato a presidente, mais tratável e mais moderno".
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Neste quadro, o fato social decisivo é que o povo brasileiro permanece mais desorganizado, mais dividido e mais vulnerável do que imaginávamos todos nós. Sem compreendê-lo não se pode também entender o impacto eleitoral da estabilização econômica.
A economia brasileira continua, mais do que nunca, dividida em dois. Um dos traços marcantes da divisão é o da organização desigual. A maioria do país continua desorganizada. E é esta massa desorganizada que permanece, em grande parte, prisioneira de uma economia periférica e atrasada, à míngua de acesso aos mercados, ao capital e ao trabalho. Nesta maioria se incluem a maior parte da pequena classe média urbana além do povão subempregado das cidades e do campo.
Há quatro características desta maioria que merecem atenção especial pelas suas consequências eleitorais. A primeira característica é que os membros desta maioria eram as grandes vítimas do regime da moeda dupla: a moeda indexada e a moeda que se aviltava no bolso. Não tinham como se defender conquistando um lugar relativamente favorável no sistema dos salários indexados. A segunda característica é que nutrem ressentimento contra os organizados e suas prerrogativas. A terceira característica é que, pelo próprio fato da desorganização, são especialmente susceptíveis às mensagens dirigidas da mídia. A quarta característica é que veneram a competência administrativa e o preparo técnico, caros, em todo o mundo, ao que têm de enfrentar a vida sem as defesas e sem os slogans das corporações sociais. Estas características convergiram para dar a máxima dimensão eleitoral ao plano de estabilização.
Ao mesmo tempo, porém, com ou sem Plano Real, permitiram à aliança construída em torno da candidatura de Fernando Henrique Cardoso colocar o dedo na ferida do PT: a relação ambígua com a maioria desorganizada do país. Desde o início o PT tem o seu horizonte imaginativo voltado para o Brasil organizado e suas corporações trabalhadoras e pequeno-burguesas ainda que uma parte crescente dos seus votos venha do outro Brasil. Olha para este outro Brasil –o Brasil da bagunça– e diz: "Incorpore-se ao Brasil arrumado". Oferece aos brasileiros do outro Brasil com uma mão a prática organizadora e com a outra mão a ajuda material, tipo campanhas contra fome. Esta resposta, porém, é insuficiente por duas razões básicas.
A primeira razão é que deixa de enfrentar o problema da contradição de interesses e atitudes que opõe os desorganizados aos organizados. Os operários e os empresários do Brasil organizado compartilham interesses e preocupações que os opõem tanto ao povão desorganizado quanto às pequenas classes médias marginalizadas e inconformadas. Aqueles se beneficiaram com a política do protecionismo econômico e da inflação consentida. Estes foram suas grandes vítimas. Aqueles admitem que a política de adultos se possa parecer com a política estudantil. Estes preferem a morte ao "assembleísmo". Se o PT quer ser um partido verdadeiramente nacional e de massa precisa colocar o Brasil todo no lugar do Brasil corporativo.
A segunda razão é que constitui uma meia verdade dizer que a prática organizadora possa dar ao segundo Brasil os traços do primeiro. É verdade que as práticas associativas são necessárias para criar capacidade coletiva de ação. Mas não é verdade que o destino de uma sociedade moderna e democrática possa ser o da integração corporativa generalizada.
Pelo contrário, a ascensão de formas menores e mais flexíveis de produção, a rebelião contra a rigidez autoritária e interesseira das organizações corporativas, a mobilidade social e geográfica, a valorização do capital humano sobre o capital físico, e até mesmo a cultura do experimentalismo espontâneo e individualista –tudo isto contribui para solapar o mundo dos sindicatos, das agremiações profissionais, das associações de bairro e das comunidades de base a que a esquerda tradicional ainda se apega. É tão verdade dizer que o Brasil desorganizado seja o futuro do Brasil organizado quanto dizer o oposto.
Disso resulta uma consequência política que a esquerda em geral e o PT em particular ainda não assimilaram. Não basta confiar cegamente na prática organizadora, oferecendo no meio tempo o entendimento com as corporações organizadas e a assistência aos desorganizados. É preciso desenvolver as formas institucionais de uma economia de mercado e de uma democracia representativa que generalizem na sociedade um poder de atuação individual e coletiva capaz de afirmar-se fora das corporações tradicionais e contra elas. Num país como o Brasil a execução desta tarefa começa numa prática política e econômica que enfrente e supere o nosso dualismo.
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O PT reagiu ao quadro previsível da campanha de maneira também previsível. Por isso perdeu-se no meio do caminho. Porém, os erros mais graves não foram os ocasionalmente cometidos, por decisões táticas mal pensadas. Foram os erros inerentes ao projeto do PT que acabaram por ficar patentes, e a cobrar seu custo, no momento eleitoral. Há dois grupos de equívocos ligados entre si. Um diz respeito às idéias; o outro, à estratégia e às alianças.
É verdade que uma vez lançado o plano de estabilização tudo ficou difícil. Nenhum truque tático, só um acidente dramático de percurso, que não veio, teria evitado o desfecho. Reconhecê-lo, porém, em nada atenua a força da crítica. O real foi uma trombada não só esperada senão também e sobretudo constituída para revelar os limites e as ambiguidades do PT e sua relativa insensibilidade às preocupações e às preferências do Brasil não-corporativo. Ao recolher as lições da campanha, temos de distinguir os equívocos táticos facilmente corrigíveis, porém secundários, dos erros arraigados –arraigados tanto na identidade do PT quanto nas tradições da esquerda contemporânea. Estes foram decisivos. O não terem conserto rápido ou fácil só reforça a necessidade de estudá-los.
O erro das idéias foi deixar de transmitir ao país a imagem clara e simples de uma alternativa estrutural. O que prevaleceu no discurso do PT foi a proposta da negociação corporativista (tal como na idéia das câmaras setoriais) para o primeiro Brasil e da assistência social (estilo campanhas do Betinho) para o segundo Brasil. Este discurso não apresentava uma estratégia antidualista de desenvolvimento nacional –uma maneira de superar a divisão do país.
Tal estratégia exigiria que se consolidasse uma vanguarda produtiva e tecnológica voltada para as necessidades tanto de produção quanto de consumo da retaguarda econômica. Requereria, também, que o governo central encontrasse uma maneira de fazer parceria com empresas privadas que, pelo cunho descentralizado, experimentalista e participativo, ajudasse a levantar os pequenos e médios empreendimentos, urbanos e rurais, da nossa vasta economia marginalizada, ainda pobres em acesso ao capital, aos mercados e à tecnologia. Mesmo a política da educação pública, o ponto nevrálgico da emancipação popular, tem de preocupar-se em dar aos brasileiros do outro Brasil não um adestramento estreito em técnicas de trabalho senão uma abertura para as capacidades e práticas gerais que permitem ao indivíduo ascender.
Mas não foi nada disso que o PT ofereceu ao país. O programa, em suas sucessivas versões, foi uma obra típica de grupos de trabalho, preocupados em catalogarem uma enciclopédia de políticas setoriais que resumem como os progressistas bem pensantes do país encaram o politicamente correto. Faltou-lhe um cerne estrutural que o país pudesse captar. E quando se exigia dos candidatos uma definição clara das mudanças estruturais pretendidas, respondiam com acenos a uma política de estilo gandhiano, tipo ajuda a indústrias artesanais no Norte e no Nordeste. Todo o mundo percebe que não é esta uma resposta para valer; é uma confissão de malogro imaginativo.
Daí não haver sido surpreendente que pensadores conhecidos do PT e do PSDB trocassem amabilidades pela televisão e reconhecessem as numerosas semelhanças entre seus respectivos programas. Não surpreendente, porém desmoralizador para os que buscamos uma alternativa verdadeira ao ideário hegemônico.
A língua franca da política brasileira virou o vocabulário social-democrata: retirada do Estado das atividades produtivas, com reserva de setores "estratégicos", e políticas sociais compensatórias para contrabalançar o efeito desigualizador da economia de mercado. Como esta visão deixa de propor uma forma estrutura diferente e igualizadora para a economia de mercado, como ela se cala sobre as formas específicas de parceria entre o Estado e as empresas privadas, ela não ameaça ninguém e pode ser abraçada por todos. O discurso do "apartheid social" confundiu-se com este vocabulário político dominante.
Este não é um erro superficial. Ele está, pelo contrário, enraizado na vida interna do PT e nas atitudes de suas lideranças maiores. Organizam-se as tendências internas do PT num espectro de radicalização progressiva das reivindicações redistribuidoras. É como se os mais moderados (e "modernos") dissessem, como disse Fernando Henrique Cardoso: somos nós o viável, enquanto que os mais radicais protestam, somos nós que queremos a redistribuição para valer mesmo, a custa de amedrontar as classes proprietárias.
O grave é que nem os mais radicais oferecem uma proposta que fundamente este distributivismo mais ou menos afoito numa concepção produtiva. Apenas compartilham a mesma confusão típica da esquerda mundial: desencanto com o estatismo, insatisfação com as políticas sociais meramente compensatórias e valorização de uma prática organizadora, como se tal prática pudesse substituir a definição de rumos claros.
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Para formular de modo abrangente a proposta programática que faltou na campanha de 1994 vale a pena tomar, como pontos de partida, de um lado a situação mundial da esquerda e, de outro lado, as oportunidades específicas que o governo de Fernando Henrique Cardoso abrirá para as esquerdas brasileiras.
Em todo o mundo, rico ou pobre, a esquerda permanece desorientada buscando um caminho que substitua o mero estatismo sem cair no conservadorismo institucional nem se restringir às políticas de ajuda e investimento social. Em toda parte a realização desta tarefa depende do êxito que se tiver em fundamentar as reivindicações distributivistas numa reconstrução do sistema da produção e da estratégia do desenvolvimento. Sem que se cumpram estas condições não há a menor possibilidade de oferecer uma alternativa atraente e viável ao projeto político-econômico que é hoje hegemônico no mundo e que se convencionou chamar o Consenso de Washington: o programa da estabilização, da liberalização parcial, da privatização radical e das políticas sociais compensatórias.
Quando se procura executar este projeto hegemônico numa sociedade muito desigual como a nossa, a execução é seletiva e truncada. Do contrário, deixaria de ser politicamente viável. Afinal, tomado ao pé da letra e radicalizado, o projeto feriria muitos dos interesses que supostamente o sustentam: a liberalização incondicional implicaria combate aos oligopólios e promoção das pequenas empresas enquanto que as políticas sociais compensatórias, levadas à dimensão necessária à sua eficácia, exigiriam a imposição às classes proprietárias de um ônus tributário incompatível com a manutenção do seu padrão de vida atual.
Por isso mesmo, uma execução radical do Consenso de Washington requereria para sustentá-lo uma base popular ampla e exigente. Só que esta base não se resignaria ao projeto tal como convencionalmente formulado. Insistiria numa democratização mais rápida e clara do poder econômico, político e cultural do que o Consenso de Washington faculta.
Deste raciocínio resulta a conclusão de que o programa do Consenso de Washington é, embora hegemônico, confuso e instável. Não há, nas condições de uma sociedade desigual, um projeto político consistente que corresponda ao seu projeto econômico. Se ele for executado seletivamente para atender aos interesses dominantes, mantém e aprofunda o dualismo, transformando os ainda excluídos em inimigos políticos potenciais. Se ele for executado radicalmente, a base popular que possibilitaria sua radicalização também acabaria por redefini-lo.
Este dilema prenuncia tanto a direção do governo de Fernando Henrique Cardoso quanto a natureza do terreno em que as esquerdas brasileiras terão de enfrentá-lo. Será um governo do Consenso de Washington seletivo: se mais seletivo ou menos seletivo depende essencialmente da vontade e da capacidade do novo presidente em impor-se aos seus aliados políticos e aos seus quadros de tecnocratas. Oferecerá um trato ao empresariado brasileiro: aceitem mais concorrência estrangeira em troca da oportunidade de enriquecer, e de deixar que o governo enriqueça, com a privatização do setor público. Procurará desenvolver as políticas de ajuda e investimento social e organizar a previdência na estrita medida que se possa financiar com um nível de tributação compatível com o padrão de vida gozado pelas classes aquinhoadas.

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