São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Uma perversão fora do lugar

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Há um tipo de tragédia que acaba com o homem nu e desacomodado, exposto à tempestade que ele mesmo criou. Esta forma de impasse é muito comum na tradição liberal e humanista. Mas existe uma outra espécie de tragédia, superficialmente parecida, mas que já começa, de fato, com o homem nu e desacomodado. Toda energia se centra sobre esta criatura isolada, que deseja e come e luta sozinha. A sociedade é, na melhor das hipóteses, uma instituição arbitrária, para prevenir que essa horda de criaturas se devorem uma às outras. E quando essas figuras isoladas se encontram, no que se chama de relacionamento, suas trocas têm a forma, inevitavelmente, de um combate."
Este é Raymond Williams, se referindo à linguagem moderna da "tragédia privada", ou mais especificamente Strindberg, O'Neill e Tennessee Williams ("Modern Tragedy", parte 2, cap. 2). Poderia, também, estar falando das praças de Sam Shepard (nascido em 1943), que a despeito do que às vezes aparentam, e a despeito, talvez, de suas próprias ambições, estão intimamente ligadas à tradição do teatro realista moderno.
O "realismo" talvez não seja, afinal, outra coisa, que uma forma extrema da ironia: reconhecendo a impossibilidade de promover a coincidência entre um texto e sua idéia de verdade, o autor irônico escolhe ficar no texto; o realista também, mas lutando contra ele. Neste teatro, cada personagem acaba sofrendo na pele a mesma divisão que atormenta seu autor, e esta divisão é o emblema figurativo de outras, de caráter tanto psicológico quanto social.
O drama dos indivíduos é também o drama de toda uma forma de vida. Entre as características que servem para defini-la estão a falsidade, o esvaziamento, a perda de rumo e a percepção de certos ritmos elementares, que só se deixam perceber em alguns momentos.
Não é por acaso que há tantas referências ao fingimento e ao "real" nestas peças de Shepard; como não é casual a personagem que toca tambores em "Angel City" (1976), na esperança de descobrir uma estrutura "que garanta a produção de certos estados de transe nas massas humanas". Os tambores contrastam com a melodia "detestável" do saxofone.
Entre o tambor e o saxofone, entre este ritmo que é simultaneamente do humano e do inumano e a melodia que é sentimento e sentimentalismo, entre a deprecação e a autodeprecação, entre o afeto e as palavras, o teatro de Shepard acaba encontrando seu equilíbrio instável, repetindo xamanicamente o encantamento de certos problemas sem solução.
Não causa espanto, assim, observar a evolução desse teatro, das primeiras peças, de caráter mais francamente experimental e fantástico –como é o caso da já citada "Angel City", ou também de "La Turista" (1967)–, até o teatro nu e desacomodado em "Oeste Verdadeiro" (1980), o ponto alto desta coletânea, e a mais recente "Mente Mentira" (1985). A intensificação deste teatro moderno corresponde a uma aparente volta ao passado, mas sempre de acordo com um compromisso estético e ético que já definia as primeiras peças. Em sua definição mais sucinta, este é o compromisso com a verdade, a tentativa, cada vez mais difícil, de explodir a linguagem e o hábito para ver as coisas como elas são. Mesmo a insistência sobre o palavrão e a linguagem não-literária –esplendidamente bem traduzida para o português– revela essa mesma ânsia de encontrar o nome certo das coisas. Os cacoetes ortográficos só acentuam o quanto eles também têm de artificial, mas o palavrão e a gíria fazem, aqui, o papel de uma linguagem pura.
Neste sentido, o teatro de Shepard mostra afinidades com o de John Osborne, na Inglaterra, ou o de Plínio Marcos, no Brasil. E nos três casos, para ficar só nesses, a dramaturgia do conhecimento acaba se deixando levar pelo curioso e quase perverso prazer da sordidez. Quem assiste esta galeria de desajustados, essas batalhas infernais entre irmãos, entre pais e filhos, entre desconhecidos que o acaso juntou, assiste, é bom que se diga, com um prazer mal disfarçado pela escuridão, pelo "dark". E é este lado obscuro da existência que será aceito, talvez rápido demais, como sinônimo de "verdadeiro".
Em seus melhores momentos, Sam Shepard é um dramaturgo hipnótico; mas mesmo em seus melhores momentos, também é um pouco barato e manipulador. Paixões em carne viva de desajustados em guerra não constituem exatamente a fórmula da verdade, mas talvez seja a fórmula adolescente da verdade. E há muito de adolescente neste teatro, que acaba se tornando, pouco a pouco, precisamente o que menos gostaria de ser: teatral. Assim como o palavrão quer ser a linguagem da verdade, de uma verdade que se esconde atrás da linguagem polida; assim também o teatro das paixões quer ser a verdade do mundo medido de cada um de nós –ou melhor, de cada americano, na visão deste autor intensamente americano. É o teatro da hipérbole, como figura, de uma vez só, do desespero e do conhecimento. A hipérbole é uma arma de resistência, e tão mais perigosa porque fica sempre nas fronteiras do histriônico.
"A civilização tinha passado sem que eles soubessem", diz o produtor Wheeler, descrevendo seu filme em "Angel City". "Você tá morto, Wheeler", exclama pouco adiante o roteirista. As duas frases se repetem nas outras peças, em inúmeras versões, dramatizando sistematicamente a falta de chão dos personagens e a condição quase tétrica de esvaziamento que cobre tudo como uma mortalha.
"Sem cérebro. Me cortaram. Cortaram. Cérebro. Cortaram", repete estupidamente Beth, em "Mente e Mentira". "Eu digo a verdade a ela, e ela transforma numa mentira", diz seu irmão Mike, em outro ponto. "Não tem nada real, aqui... Muito menos eu!", exclama o dramaturgo Austin em "Oeste Verdadeiro" –as mães de Shepard são verdadeiros monstros de alienação.
Este vazio não nos é estranho: também no Brasil uma geração viu despontar um mundo novo e mais tarde foi obrigada a recolher os cacos quebrados. Em circunstâncias políticas muito diversas, o resultado, porém, no plano individual, tem se mostrado semelhante e deixou seus representantes plantados, como Sam Shepard, numa revolta um tanto desesperançada, entre a nostalgia e o ressentimento, sempre prontos a diagnosticar lucidamente as chagas de uma modernidade que talvez nem seja mais a nossa.
Mas o vazio tematizado no teatro de Shepard marca ironicamente uma outra ausência, não preenchida, no panorama da dramaturgia hoje. Aos olhos de outra geração, as "Quatro Peças" parecem hoje um teatro de época, um "vaudeville" aterrador, mas insistindo, ainda, como podem, e com o tanto de "pathos" que isto acarreta, na sobrevivência de uma arte em extinção.
Seja como for, seria difícil reconhecer em Sam Shepard o "grande intérprete, no teatro, dos conflitos característicos que constituem o drama –o sangue!– das nossas vidas hoje", como dizia O'Neill a respeito de Strindberg. Resta saber o papel que pode exercer uma obra como essa sobre o nosso próprio teatro. "A rarefação intelectual do teatro brasileiro torna o problema ainda mais agudo neste campo que nos demais", escreveu há três anos Otavio Frias Filho, na introdução a uma de suas peças.
Três anos depois, nada indica que a situação tenha mudado; mas as peças de Shepard parecem cada vez mais fora de lugar. O tempo dirá se elas têm força para se integrar à tradição. Por enquanto, servem como documento e como exemplo de um caminho a ser evitado, por um teatro que já se voltou para outros problemas e cultiva outros pressupostos.

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