São Paulo, terça-feira, 15 de novembro de 1994
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"Assassinos..." de Stone engana todo mundo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Assassinos..." engana todo mundo
Filme de Oliver Stone, linguagem épica do crioulo doido, confunde fluxo da consciência com porralouquice
O filme "Assassinos por Natureza" (Natural Born Killers) é um "trompe l'oeil" (um "engana-olho"). Parecer ser um filme, mas é outro. Mas também não é outro. É o mesmo. Tudo é legítimo e ilegítimo neste filme. Bom exemplo da esquerda pós-tudo ou da direita pós-pós ou do centro "voodoo lounge" (tradução: terreiro de macumba) ou do mictório "além-Duchamp".
O mictório não busca mais criticar a arte; a arte é que se refugia nos braços de seus assassinos, na luz sinistra de sua negação, em busca de saída, nos motéis de néon e lanchonetes de fórmica. É a "pulp art", não mais a "pop art". Este filme é um espelho da decolagem da cultura americana em direção a um infinito barroco-eletrônico curvado sobre si mesmo em parafuso auto-referente (ufa!).
Oliver Stone também é um "engana-olho", como o filme. Não é um bom cineasta, mas parece ser um bom cineasta. Parece ser "progressista", crítico da sociedade americana, mas não é. Mas também não se pode dizer que seja "de direita", porque Oliver engoliu todas as cobras, as velhas teses da esquerda, da contracultura, e as industrializou a todas numa cabeça de Medusa de plástico verde.
Oliver tomou todas as drogas, matou no Vietnam, come todas as mulheres, é contra o mistério JFK, vive doidão com mil projetos no jatinho da Warner, criticando a América com o dinheiro da América.
Sua boca raivosa não é a do artista típico de ontem, o diretor massacrado de Angel City. Ele come LA, come o Quentin Tarantino –ele sacou que vinha um craque e comprou dele por 50 mil dólares o roteiro de "Born Killers", antes de Quentin fazer sucesso com "Cães de Aluguel". E aí fez um "pré-pulp fiction", antes do outro. Só que um pouco mais careta, tirando a espontânea falta de sentido do mais jovem e injetando no filme uma consciente falta de consciência, uma "loucura" programada em computador.
Saiu este filme, que é um prodígio de "livre-associação mental", esta forma arcaica filha do baixo surrealismo e da psicanálise selvagem, esta linguagem épica do crioulo doido que o videoclipe consolidou e que, "engana-olho" também, parece liberdade, mas não é. A livre boca solta dá a sensação fátua de "criação", como se o não-pensar tivesse contido nele o tesouro da verdade. Não confundir fluxo da consciência ("stream of consciousness" – Joyce) com porralouquice.
A base dramática que sustenta o filme é antiga na mitologia romântica americana: um casal de marginais foge em nome do amor e luta até a morte contra o sistema repressor que os persegue. Esta mitologia de marginais-heróis na sociedade do trabalho sagrado (chiliques anti-calvinistas) deu algumas obras-primas como a novela "Wild Palms" de Faulkner (quem filmará um dia?) ou pequenos dramas malcriados como "Sugarland Express" e mais recentemente o bom "Coração Selvagem" (Wild at Heart) de David Lynch.
Como Lynch e Faulkner ficam antigos diante deste "voodoo lounge"!... Ficam "antigos" porque ainda acreditavam numa pureza qualquer, antigos na utopia de algo significar. "Significar" é um velho sonho cada vez mas supérfluo; o importante é "parecer" significar.
Oliver parece humanista, mas não é. Parece anti-humanista, mas não é. Tanto faz. Oliver mata o "homem da mídia", que ele parece críticar no final do filme; mas ele é o próprio homem da mídia. É um falso suicídio.
Oliver quer tudo, poder, sistema e contracultura, tudo. Ele se dá ao luxo de ser progressista. E no entanto (vejam o jogo de espelhos) Oliver Stone é realmente um herói de Hollywood. Por quê? Porque tem estômago. Ele consegue conviver e vencer a barra pesada da produção.
E sua verdade tem o dom de iludir.
O filme finge que é um filme contra a lei. E aí engana os politicamente corretos, que bradam: "Que horror! Que elogio da violência! Que sangueira!"
E replicam outros mais "loucos": "Que nada, é uma crítica contra o sistema!"
Aos dois, Oliver poderia responder como Godard, quando falaram que seu filme "Made in USA" tinha muito sangue: "C'est pas du sang, c'est du rouge!" (não é sangue real, é vermelho).
Oliver engana todo mundo. O filme engana o politicamente correto (que não gosta), pois é falsamente incorreto. E engana o contracultural (que gosta), porque sua incorreção é programada como um clipe consciente de sua anarquia. Vargas Llosa saiu no meio em Veneza, escandalizado (oh, liberais elegantes do terceiro mundo!...)
Eu fui ver, preparado para a sangueira, como que entrando num necrotério. Nada. É sangue lúdico, sangue de fliperama, sangue de boliche sangrento, sangue gelado de robô. Vi que o filme é uma operação intelectual-comercial de atender aos conceitos críticos contra a virtualização da vida americana; é a crítica da crítica sem aprofundá-la, mas desidratando-a com um pretexto paródico.
Difícil de entender? Mas é a cara dos EUA. Todos começam com muita valentia e depois a baba das coisas vai pegando, a baba das coisas vai comercializando o Spike Lee, Quentin Tarantino chega lá. Oliver Stone é mais malandro, ele já sabia antes, ele nunca foi santo; ele sempre quis ser a baba da baba.
Eu fiquei meio gelado no cinema, fascinado apenas com a genial constelação de técnicos de efeitos especiais –como trabalham bem esses caras!...
Quanto ao "snock corridor", o filme não me fez tremer de horror como faz o "Rambo", o "Cobra", na coisa da morte e violência.
O cinema estava meio vazio. E aliás nos EUA caiu também a bilheteria. O filme desilude e decepciona o cretino fundamental, o cretino-batata. O fascio-cretino de classe média rancorosa quer mesmo é sangue real, nada de metassangue.
O "middle brow" sabe que o verdadeiro filme violento tem de ser do lado da lei. O herói sangrento tem de matar os marginais. Aqui os marginais são heróis. O filme não é suficientemente de "direita" para agradar. Povo não quer metalinguagem; quer cabo Camata, Afanazio. O espectador ideal de "Rambo" é a favor de uma lei sangrenta e conservadora, do extermínio dos excluídos, dos bandidos. Não lhes interessa metaviolência inconformista.
A verdadeira violência aspira a uma ordem pública. Os torturadores são bons pais de família. Aspiramos a uma lógica-Rambo, esteja ele matando ladrões ou vietcongues. Queremos eles mansinhos beijando crianças ou a mocinha no final –sempre Stallone ou Chuck Norris ficam legais no fim.
Há uma coisa terrivelmente moderna em Oliver Stone: fingindo um engajamento crítico contra os EUA, ele na verdade se livrou de qualquer desejo ingênuo de querer significar. Seu desejo é uma louca escapada com poder, dinheiro e fama em direção a um ideal explosivo de vitória que está entranhado na alma americana: tudo conquistar e chegar a um verdadeiro Oeste transcendental. Esses caras ainda vão destruir o mundo...

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