São Paulo, terça-feira, 15 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cinco diretores deliram com Rússia dos anos 90

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Programa: A Rússia na Visão de... (Momentous Events - Russia in the 90's)
Documentários: "Alice no País dos Russos", de Ken Russell, "Crianças Brincam de Rússia", de Jean-Luc Godard, "Sinos do Abismo", de Werner Herzog, "O Nariz", de Lina Wertmüller, e "Cantigas do Passado", de Nobuhiko Ohbayashi
Produção: Cecco Films
Quando: de hoje a sábado, às 22h30, na seguinte ordem: Russell, Godard, Herzog, Wertmüller e Ohbayashi
Emissora: TV Cultura

A série "A Rússia na Visão de..." (Momentous Events - Russia in the 90's), que a TV Cultura exibe de hoje a sábado, demonstra o quanto o gênero documentário guarda um impulso de ficção.
São cinco filmes de 60 minutos cada produzidos pela Cecco Films. O projeto é retratar a Rússia dos anos 90, pós-comunista e pós-imperial. Cinco diretores de fama se engajaram na idéia: o inglês Ken Russell, o francês Jean-Luc Godard, o alemão Werner Herzog, a italiana Lina Wertmüller e o japonês Nabuhiko Ohbayashi.
Só pelo nome e o trabalho de cineastas como Russell, Godard ou Herzog já é possível arriscar que o quadro não é caninamente fiel ou objetivo.
O retrato de uma Rússia incógnita se transforma em delírio pelas câmeras famosas. Cada uma delas busca soprar no borralho do império soviético o lume dos símbolos que caracterizaram a velha Rússia: o misticismo exacerbado, as fábulas traduzidas pela literatura, cantigas de ninar, ícones e a carga pesada da História.
Documentário deve ir entre aspas. O primeiro a ser exibido é "Alice no País dos Russos" (Alice in Russialand), de Ken Russell. Consiste numa encenação infantil, regressiva, da história da cultura russa.
Uma atriz adulta (Hetty Banes), fantasiada de Alice de Lewis Carroll, saltita pelo mundo encantado da "Russialândia". Conhece o gato Glasnost (uma espécie de cossaco gay), faz com ele uma coreografia em torno de grafismos construtivistas e suprematistas e contempla foguetes e luas com o rosto de Lênin e Stalin.
Tudo se passa num cenário hiperfalso. Em certo momento, Alice estaca depois de muito correr e exclama: "O Camarada Stalin! A Rainha Vermelha! Onde vou me esconder?". É que o malvado Stalin come criancinhas.
Bem mais sutis são as visões de Godard. Em seu "Crianças Brincam de Rússia" (Les Enfants Jouent la Russie), que passa amanhã, não há uma imagem real e atual da Rússia. Um caleidoscópio de fotogramas traz à tona Stalin, Lênin, filmes de Eisenstein, retratos de escritores, filmes de trabalhadores e camponeses típicos do realismo socialista.
Um grupo de literatos e cineastas de mentirinha invade a cena e passa a digredir sobre como o Ocidente deturpa o imaginário russo e qual a melhor forma de fazer um documentário sobre o país.
Diz Godard pela voz de um dos personagens: "Depois de Napoleão e Hitler, todas as pessoas inteligentes do Ocidente querem invadir a Rússia. Por quê? Por ser a terra natal da ficção e o Ocidente não sabe mais o que inventar."
O filme quer ser ele próprio um obstáculo à invasão. As garçonetes têm o rosto de Ana Karênina. Nominalista como sempre, Godard lembra que o subtítulo do livro-denúncia "Arquipélago Gulag" é "um experimento de investigação literária". Ele sonha em conservar intacto o império da ficção.
Outra abordagem fantástica é de Lina Wertmüller com "O Nariz", que vai ao ar na sexta. Um membro do Conselho Municipal de Moscou acorda sem nariz e sai por Moscou entrevistar gente sobre sonhos e ídolos.
Herzog comparece com "Sinos do Abismo", a ser exibido na quinta. O filme passou na última Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e se debruça sobre o misticismo. Herzog caçou pela Sibéria Rasputins e pastores evangélicos, xamãs, exorcistas e curandeiros. As cenas de magia negra e as falas dos camponeses são a prova de que a crendice popular ainda vai demorar para ser exterminada.
A série se encerra com "Cantigas do Passado", de Ohbayashi. Trata-se de uma visita a cinco famílias de cinco cidades para obtenção de canções de ninar. Todo mundo canta, conversa, comenta as canções. Através desse processo, o diretor prova que a canção de ninar é um "áleph" da cultura russa –um signo que contém simultaneamente todos os tempos e superstições de um povo.
Parece que sete décadas de regime autoritário e de "pogroms" culturais não foram suficientes para desmaterializar a "alma" russa.

Texto Anterior: "Assassinos..." de Stone engana todo mundo
Próximo Texto: Konchalovsky volta às origens com olhar irônico
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.