São Paulo, quarta-feira, 16 de novembro de 1994 |
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O estadista e o pusilânime
LUÍS NASSIF
Neste momento, surge Mirabeau. Com uma retórica explosiva, um jogo cênico excepcional e idéias claras e precisas sobre o futuro, em apenas dois dias ele define o novo regime político. Não apenas isso, como também prevê, naqueles dois dias mágicos, os desdobramentos futuros que acabariam liquidando o regime séculos mais tarde. Morreu poucos anos depois e foi enterrado no Panteão dos Grandes Homens da França. Século e meio à frente, descobriu-se que o grande herói francês era um estróina, um sujeito que brigara com o pai na adolescência, fora preso por inadimplência, sequestrara donzelas indefesas. Imediatamente teve início uma campanha na França –liderada por um intelectual cujo nome o tempo apagou–, visando tirar as cinzas de Mirabeau do túmulo dos Grandes Homens. O lema da campanha era: "todo grande homem é um virtuoso". Quem garantiu a Mirabeau o descanso eterno foi um filósofo espanhol, Ortega y Gasset, que produziu um monumento do pensamento político –"Mirabeau e outros temas"–, relançado recentemente pela Editora Universidade Nacional de Brasília. A pusilanimidade As lembranças vêm a propósito da capa de uma revista semanal, enaltecendo os "Anos Itamar". Sem negar as trapalhadas do presidente, a conclusão final é que virou virtude de Estado o fato de o medo de Itamar (felizmente) ter sido maior do que sua ignorância. Seu governo paralisou o processo de ajuste do Estado. Permitiu a quebra da Previdência e da Saúde. Estourou novamente os limites de gastos correntes do Estado. Perdeu completamente o controle dos salários das estatais. Interrompeu o processo de ajuste dos bancos estaduais. Permitiu a volta do endividamento circular do setor elétrico. Mas o presidente é um grande homem, porque sua timidez foi maior que seu desequilíbrio. Em seu ensaio, Ortega y Gasset desanca sem dó essa elegia das pequenas virtudes do homem comum –que ele denomina de as virtudes da "pusilanimidade". Em contraposição aos "pusilânimes", o espanhol traça o perfil definitivo dos estadistas. Não se espere que o estadista seja um homem virtuoso, diz ele. Os estadistas são homens de ação, basicamente inescrupulosos –no sentido de jamais permitirem que uma dúvida escrupulosa interrompa a ação. Escrúpulos é coisa de intelectual, é um álibi para a não-ação, diz ele. A única coisa que se pode exigir de um estadista é que se arrependa, mas só depois de ter completado a ação. Obviamente, não basta apenas a falta de escrúpulos. O estadista é um intuitivo genial, que define um modelo de país na cabeça e centra todas suas energias para concretizar seu objetivo. Ele trapaceia, mente, engana, alia-se ao diabo. Só é absolutamente íntegro quando entra em jogo o Estado. Megalomaníacos A grande acusação que se fazia a Napoleão é que ele era megalomaníaco. Claro que era –diz Gasset. O sonho de Napoleão era ser Napoleão. Não há nenhuma pessoa que, dispondo-se a mudar um Estado, não seja um megalomaníaco. Vai além. Em geral, os estadistas têm uma adolescência extremamente conturbada e polêmica. Todo estadista tem um fogo interno, um vulcão que só se materializa na maturidade, quando ele logra conquistar o poder. A visão elegíaca sobre o papel de Itamar é interpretada de maneira magistral por Ortega y Gasset. O estadista está distante, é grandioso, seu papel não é acessível a ninguém que não seja estadista. Já o homem comum... é comum. É fácil aceitar que um homem comum deu certo. O diferencial em relação aos demais foi a sorte, não o mérito. E isso conforta o crítico, permite-lhe tornar-se generoso, tratar seu objeto de crítica com a condescendência apenas possível em quem se considera maior que o criticado. Já o estadista incomoda. É dotado de grandes virtudes –e de enormes defeitos. Tudo nele é enorme, exagerado, ameaçador. Incomoda a diferença de estatura. Incomoda a perspectiva de sucesso –já que sua ânsia de poder sempre é ameaçadora. Incomoda a arrogância, a falta de limites. Só que estadistas forjam nações. E os pequenos virtuosos apenas pontificam com data marcada. É duro aceitar. Mais ainda pelo colunista, que foi alvo de perseguições pessoais por parte do esquema Collor. Mas o fato é que esse Brasil memorável, traçado pela revista, foi desenhado por Fernando Collor. O mesmo Collor megalomaníaco, arrogante, inescrupuloso, pouco criterioso que o país conheceu. Mas dotado de uma visão de futuro bendita porque –ao lado do processo de impeachment, fruto de seus enormes defeitos– permitiu mudar irreversivelmente o país. O mérito do pequenino Itamar foi apenas ter atrapalhado pouco a colheita –muito mais por conta dos pequenos defeitos da pusilanimidade (o medo da crítica) do que por convicções formadas. Apenas isso. Texto Anterior: Cresce produção nos EUA Próximo Texto: Kibon lança 21 sorvetes para vender 9% a mais Índice |
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