São Paulo, quarta-feira, 16 de novembro de 1994
Próximo Texto | Índice

O Rio contra o crime

SERGIO F. QUINTELLA

Em artigo recente publicado aqui na Folha na sua coluna semanal, o jornalista Otavio Frias Filho examinou, sob enfoque inovador, a questão da intervenção militar para combater a criminalidade no Rio de Janeiro.
"Vietnã também é aqui?", pergunta, preocupado com as possíveis semelhanças com o drama vivido pelas Forças Armadas norte-americanas (e antes delas pelas francesas), combatendo em país estrangeiro, sem motivação, assistindo à convivência fraterna (e muitas vezes cúmplice) entre os guerrilheiros e a população civil.
O resultado sabemos, depois de muitos anos e muito sangue, mais do que a derrota militar, foi a humilhação, a profunda dissensão política interna e o questionamento da própria missão e envolvimento militares.
Há, perpassando em todo o artigo do jornalista, demonstrações do carinho pela cidade "que tem a cara do Brasil". Mas há, sobretudo, preocupação com questões institucionais, com o papel das Forças Armadas na sociedade que desejamos democrática e o receio –a meu ver infundado– "de uma guerra sem fim". A importância da Folha na formação da opinião pública brasileira justifica algumas reflexões.
Penso haver consenso de que o Rio de Janeiro vem sofrendo contínuo e agudo processo de esvaziamento. Os indicadores econômicos e sociais, a queda da renda/habitante, a proliferação das favelas, dos bairros e cidades periféricas sem sustentação produtiva, o elevado grau de informalização no trabalho, tudo isso constitui um quadro em que a marginalidade, nas suas diversas formas, cresce e prospera.
Dúvidas parecem contudo existir sobre as razões e causas desse esvaziamento. Como carioca, recuso-me a aceitar que somos, sozinhos, os responsáveis pelo que está acontecendo na nossa cidade e no nosso Estado. Identifico três matrizes:
a) as decisões políticas e de política industrial de vários governos federais que afetaram profunda e negativamente o desempenho da economia do Rio;
b) a sucessão de governos estaduais que, ao longo dos últimos 20 anos, contribuíram para o agravamento do quadro de deterioração das condições econômicas e sociais no Estado e, finalmente,
c) a incapacidade das elites políticas, empresariais, acadêmicas e sindicais do Rio de se unirem na formulação e implementação de um programa mínimo de desenvolvimento.
Uns poucos exemplos demonstram a discriminação a que foi submetido o Rio por decisões políticas do governo federal. Iniciou-se com a fusão –sem consulta às populações dos antigos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro e sem que fossem cumpridas as obrigações assumidas pela União como compensação aos ônus financeiros e administrativos decorrentes dessa fusão.
Continuou pela postergação, por mais de dez anos, do pagamento dos "royalties" de petróleo (ainda hoje em níveis irrisórios se comparados com os de outras regiões produtoras), pela isenção constitucional de ICMS do petróleo produzido e pela recusa em implantar no Estado do Rio, principal produtor de gás e petróleo do país, um dos dois pólos petroquímicos patrocinados pela União via incentivos fiscais e creditícios.
Prosseguiu com a expansão siderúrgica em Minas Gerais e Espírito Santo, relegando-se à antiga estatal de Volta Redonda o papel secundário, que só agora, com recursos próprios e após a privatização, começa a ser revertido. As regiões norte e noroeste do Estado –com níveis de miséria e subdesenvolvimento similares aos do Nordeste mais pobre– não podem competir com o Espírito Santo seu vizinho, porque lá vigoram isenções fiscais que a elas foram negadas.
A lista é longa, e continuaria pela informática (com a instalação em Campinas dos centros de tecnologia da Telebrás e os laboratórios da SEI), pelo abandono do porto de Sepetiba, pela carência de investimentos federais em transporte ferroviário e comunicações e até mesmo pelo bloqueio, durante mais de 20 anos, do acesso aos financiamentos do BID e Banco Mundial.
Situado no Sudeste brasileiro, próximo às megarregiões metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte (sendo ele mesmo um grande mercado consumidor), dispondo de mão-de-obra qualificada (34% da sua força de trabalho tem mais de nove anos de instrução, contra 24% de São Paulo e 21% de Minas Gerais, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas), o Estado do Rio viu cair em termos reais a receita tributária, aumentar seu endividamento (hoje quatro vezes maior do que há dez anos), com a consequente incapacidade financeira de manter a qualidade dos serviços públicos de saúde e segurança (as verbas orçamentárias para segurança caíram de 14% em 84 para 7,21% em 93).
Foi nesse quadro que a marginalidade cresceu e prosperou. Ausente o Estado na prestação às comunidades carentes dos serviços públicos essenciais, o "coronel" urbano –provedor de bens e serviços– domina e impera, inclusive como cabo eleitoral, ampliando a sua influência no Legislativo e Judiciário.
Relações incestuosas com o crime (drogas, desmonte de carros, sequestros) minaram a confiança da população nas forças policiais, as quais, mal remuneradas e equipadas, não são capazes, sozinhas, de combater o crime organizado.
Ninguém de bom senso e que conheça de perto, como especialista ou vítima, a problemática de segurança do Rio imagina ou deseja que as Forças Armadas possam ou devam substituir as polícias nas suas tarefas.
É fácil subir os morros e combater os marginais que lá se entrincheiram. Difícil é o Estado lá permanecer, fornecendo às populações pobres os serviços essenciais de que carecem.
A tarefa do Exército –única força que detém hoje a confiança (e a esperança) da população é:
a) depurar as polícias Civil, Militar e Federal;
b) coordenar a ação das diferentes forças que atuam no Estado;
c) suprir com os seus serviços de inteligência as carências das organizações e, por fim,
d) viabilizar a "ocupação" pacífica dos morros e favelas pelos médicos, dentistas, assistentes sociais e educadores que, a médio e longo prazos, são a resposta e a solução.
Nesse sentido, a guerra não é sem fim, como teme com razão o articulista, mas será longa, difícil e desafiante.
O aforismo chinês de crise é oportunidade. Parece que a sociedade do Rio –e espero de todo o país– começa a despertar para a necessidade imperiosa de combater o crime de forma global e não apenas pela repressão policial ou militar.
O Rio dispõe das condições para atrair turistas, investidores e empresários, afugentados hoje pela escalada da violência. O novo Brasil que está surgindo das urnas, aberto, democrático, participativo e questionador, abre perspectivas fascinantes. A nossa esperança, como cariocas e fluminenses, é que o retrato desse novo Brasil seja o retrato do Rio.

Próximo Texto: Rio, mostra tua cara
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.