São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 1994
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Hitchcock cria três variações sobre a culpa

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Na última vez que apareceu em público, em março de 1979, Hitchcock proferiu seu conselho aos jovens: "Não sejam presos". Os apóstolos do mau humor podem babar de ódio desde já: ele não falava, claro, a sério.
Mas esse foi, a rigor, o conselho que Hitchcock deu a todos os seus heróis em toda a sua vida, em particular nesses três filmes que a Hollywood Collection está lançando: "The Lodger" (1926), "Os Trinta e Nove Degraus" (1935) e "Quando Fala o Coração" (1945) –todos em preto-e-branco.
"The Lodger", seu terceiro filme, pertence ao período mudo e foi o primeiro em que surgiu a estrutura do suspense hitchcockiano. A história é a de um homem suspeito de ser o estrangulador de mulheres que aterroriza Londres.
Foi também o primeiro filme em que o diretor teve liberdade na escolha do argumento. Ele usou aqui os conhecimentos adquiridos em seu estágio na Alemanha e criou belos efeitos de imagem.
O essencial é a introdução da idéia de transferência de culpa, isto é: o herói é acusado pelo crime cometido por um outro e precisa demonstrar sua inocência.
O espectador também terá a chance de ver um jovem Hitchcock com enorme segurança narrativa e, embora o filme se ressinta de um excesso de efeitos, sua capacidade de contar uma história com limpidez e clareza já se encontra toda ali.
Também está ali, em seu primeiro estágio de desenvolvimento, a idéia do herói preso por algemas, tipo do objeto que fascinava o mestre inglês, sobretudo pela associação entre ligação e sexualidade de que está investido.
Ainda no período mudo, ele daria um exemplo agudo do interesse por esses objetos, fazendo o bracelete de "The Ring" (1928) circular entre os personagens, de maneira a indicar as preferências e hesitações de sua heroína (que tem de escolher entre dois homens).
Quando chegamos a 1935, a "Os Trinta e Nove Degraus", Hitchcock já havia ultrapassado a primeira das crises cíclicas de sua carreira, marcadas por fracassos de público. Era tido como "acabado" após "Waltzes from Viena" (1933). Respondeu com a primeira versão de "O Homem que Sabia Demais" (1934), sucesso enorme.
Já então trabalhava com o produtor Michael Balcon, que bancou "Os Trinta e Nove Degraus". O filme consolidaria o prestígio do diretor nos EUA e é uma de suas obras-primas da fase inglesa. Adaptando um romance de John Buchan, Hitchcock trabalhou no roteiro com Charles Bennett, alterando substancialmente a história, a partir de um princípio: é preciso que cada sequência funcione.
A base, porém, é a de seus filmes-itinerário: homem (Robert Donat) acusado de um crime deve percorrer a Inglaterra inteira para demonstrar sua inocência. Aqui, a idéia das algemas aparece mais desenvolvida. Em dado momento, Donat deve atar-se à heroína por algemas (para que ela não o denuncie). Mas é o desejo e a resistência que ela já evoca.
"Os Trinta e Nove Degraus" é um filme de ritmo rápido, leve e cheio de invenções vigorosíssimas. Há desde a bala que logo no início se aloja na Bíblia que o herói carrega (ela impede sua morte e ao mesmo tempo introduz o catolicismo, elemento central no pensamento do diretor) até a presença de mr. Memory, personagem notável, cuja incrível memória (sem falar no senso profissional) acaba sendo a chave para o desvendamento da trama de espionagem que envolve o personagem.
Em tudo e por tudo, "Os Trinta e Nove Degraus" é uma obra-prima, dessas fitas que qualquer colecionador quererá ter em casa.

Filme: The Lodger (1926)
Direção: Alfred Hitchcock
Produção: Inglaterra, 1926
Elenco: Ivor Novello, Daisy Jackson Distribuição: Continental Home Video (011/284-9479)
Filme: Os Trinta e Nove Degraus
Direção: Alfred Hitchcock
Produção: Inglaterra, 1935
Elenco: Robert Donat, Madeleine Carroll
Distribuição: VTI (011/283-3438)

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