São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 1994
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Mestre do humor salvou a vida de Tio Dave

DAVID DREW ZINGG
EM SÃO PAULO

E sta é uma semana literária, Joãozinho. Portanto, deite tua cabecinha nesta página e veja se consegue ouvir o rabiscar da caneta de um grande escritor.
Não, não estou falando de mim mesmo, mas de um humorista da Gringolândia, chamado James Thurber. Muitas pessoas dizem que o sr. Thurber tinha um talento comparável ao de Mark Twain para fazer sorrir. Em termos brasileiros, o grande mestre do sorrir seria um Millôr Fernandes.
Este ano marca o centenário do nascimento de Thurber. Seria injusto de minha parte não tomar nota desta data significativa na difícil viagem humana rumo à autodiversão, pois Thurber e seu colaborador na velha revista "New Yorker", E.B. White, foram responsáveis pela visão deturpada que tio Dave tem do mundo.
Fui criado numa minúscula cidadezinha do interior, do outro lado dos montes Orange, perto do brilhante centro cultural que é Nova York. Enquanto jovem e paranóico rapazinho caipira, tentei desesperadamente fugir das normas interioranas que regiam minha família vitoriana de Nova Jersey.
Parecia óbvio que eu estava atolado numa areia movediça de sufocantes diretrizes paternas e maternas. Mas, então, descobri a revista "The New Yorker". Ali, pronto e ansioso por me salvar do perigoso rodamoinho de seriedade caipira, estavam meus dois salva-vidas intelectuais, E.B. White e James Thurber.
Falaremos de E.B. White outro dia. Nosso tema desta semana é Thurber, nascido em 8 de dezembro de 1894.
O que Thurber oferecia a um adolescente solitário como eu era uma espécie de indefinição irônica que com o tempo se transmutou num "insight" poético pensativo. Thurber soava como a voz da sanidade, que tomava o fracasso humano como dado e a confusão como absoluto.
Thurber parece haver tido boas razões para pensar assim. Ele era amargo porque sofrera muito; garoto, perdeu um olho quando seu irmão, brincando desajeitadamente de William Tell, o acertou com a flecha com que pretendia derrubar a maçã colocada sobre sua cabeça. Mais tarde Thurber ficou cego do outro olho também.
Geralmente ele dava a vitória ao bom senso. Ele deliciava os adultos necessitados de uma boa risada, mas a este garoto desesperado de Nova Jersey ele fazia gritar de alegria. Eu me lembro vividamente de sua versão deturpada do "Chapeuzinho Vermelho".
A garotinha chega na casa da avó e ainda está a oito metros da cama quando se dá conta de que não é sua vovozinha que está deitada ali, e sim um lobo. Sem pestanejar, ela tira uma arma da cestinha de doces e explode a cabeça do lobo. (Moral da história: hoje em dia já não é tão fácil enganar as menininhas.)
Seu conhecimento do lado feminino agressivo era íntimo. Conta-se uma anedota sobre ele e sua primeira mulher num concerto de música erudita, sentados bem longe um do outro, como de costume. Sua mulher, bêbada, levantou-se no meio de uma partita de Bach e urrou: "Pelo amor de Deus, toquem alguma coisa que dê pra gente cantar!!" Thurber, do outro lado do salão, levantou-se e berrou para ela, mandando-a calar a boca e sentar-se. Ela deu o troco na mesma moeda.
Era o tipo de casamento que levaria a maioria dos homens a um silêncio pétreo. Mas a alquimia literária de Thurber transformou aquela mulher de espírito de chumbo em ouro literário.
Nunca tive o privilégio de conhecer o grande homem cara a cara, embora Deus sabe que eu passava horas no saguão do hotel Algonquin, na esperança de dar com ele entrando ou saindo de uma das célebres sessões de bebidas e aforismos da Távola Redonda ali instalada.
Alguns amigos que tínhamos em comum me descreveram, muito depois, um homem amargurado pelo tratamento –que ele considerava injusto– que recebia às mãos da "The New Yorker", onde ganhava apenas entre US$ 200 e US$ 400 por artigo.
Nossos amigos comuns falavam sobre seu alcoolismo, baseado num gosto ensandecido por quantidades enormes de scotch, mas ao mesmo tempo descreviam sua benevolência para com jovens escritores ainda não reconhecidos. Ele também exerceu forte influência sobre escritores contemporâneos, de John Updike a Garrison Keillor. Pessoas muito menos interessantes do que estes, como tio Dave aqui, também eram rendidas por seu mágico encanto.
Meu artigo humorístico predileto de Thurber é um em que ele ridiculariza a adoração por Charles Lindbergh que acometeu a Gringolândia em peso, depois que este atravessou o Atlântico sozinho de avião, pela primeira vez.
Cada vez que penso num herói de nossos tempos eu me lembro do prototípico Jack Smurch criado por Thurber, "The Greatest Man in the World" (O Maior Homem do Mundo). O sr. Smurch (em inglês, mancha de sujeira) se transforma em ídolo nacional depois de dar a volta ao mundo sozinho num avião, sustentado por uma dieta simples à base de gim contrabandeado e três quilos de salame. Enquanto Smurch está nos ares, os repórteres descobrem que, na realidade, ele é um bandido nojento, amante da baixa vida.
Sua mãe, uma cozinheira decadente e mal-falante num restaurante barato, diz: "Para o inferno com ele. Espero que se afogue".
À medida que aumentam os histéricos elogios internacionais a Smurch, o governo americano em Washington começa a compartilhar fervorosamente da afetuosa esperança de sua mãe.
Smurch aterrissa e é imediatamente levado embora por agentes do governo que vão instruí-lo sobre como ser uma herói respeitável. Num encontro com o presidente da República e outros altos funcionários, no nono andar de um edifício de Nova York, Smurch, deselegante, anuncia que pretende arrancar o máximo possível de dinheiro de sua proeza.
Todos os presentes ficam chocados. A um sinal de cabeça do presidente, um dos altos funcionários empurra Smurch pela janela. Sua queda fatal é seguida por luto nacional e Smurch é enterrado no Cemitério Nacional de Arlington, sob uma laje de mármore branco.
Os EUA inteiros fazem dois minutos de silêncio em sua homenagem e sua mãe é forçada a participar. Observada de perto por um agente do Departamento de Justiça, ela se posta ao lado do fogão "com um sorriso sinistro nos lábios, retorcido e estranhamente familiar".
Em 1939 ele escreveu o que viria a ser sua obra mais conhecida, "The Secret Life of Walter Mitty" (A Vida Secreta de Walter Mitty), de apenas seis páginas. Walter Mitty é um personagem que é sinônimo do homem comum atormentado por sua esposa, que em suas fantasias torna-se um heróico comandante da Marinha, um banqueiro milionário, um cirurgião mundialmente famoso e um amante irresistível. Mitty acabou transformando-se em filme, estrelado por Danny Kaye, e em parte integrante do vocabulário da Gringolândia.
Thurber ainda é engraçado. Em seus melhores momentos, é muito, muito engraçado.
Certa vez ele escreveu um ensaio sobre como ser engraçado. "É possível", disse ele, "que um dia seja inventado um tipo novo e válido de humor, mas espero que seu inventor o envie a outra pessoa".
Tradução de Clara Allain

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