São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 1994
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Garbo brilha em dois momentos

ARNALDO JABOR

Atriz está no épico 'Rainha Cristinha' e no drama mudo 'O Beijo'

Os dois vídeos de Greta Garbo que estão sendo lançados se montam como dois pontos luminosos do cinema. "O Beijo" é um filme mudo de 1929, o último filme da diva sem som; "Rainha Cristina" já fala pelos cotovelos e realiza plenamente o que o cinema mudo se sentia impotente para realizar: a narrativa fechada do idealismo romântico que dominaria as décadas seguintes.
"O Beijo" é uma simples história de adultério e morte dirigida por Jacques Feyder e passa-se na França, que no imaginário americano seria terra de luxúria. Nele vemos como era difícil para o cinema mudo se encaixar na linguagem naturalista do drama burguês.
O cinema sem som poderia até evoluir para uma arte mais épica, evocativa, como esperavam tantos artistas visionários, como Eisenstein ou Carl Dreyer. Mas, vendo "O Beijo" em cenário art déco, com paixões, flagrantes, tiros e mortes, sente-se que o cinema falado, além de ser uma necessidade de mercado, era também uma necessidade narrativa que a caretice do verismo internacional pedia.
Era preciso transformar o cinema num teatro convencional como as peças de bulevar. O drama burguês precisava da fala, como o seu mundo precisa do ocultamento. A fala naturalista oculta o sentido que imagens soltas podem revelar.
O mundo burguês precisava do cinema falado não para se aprofundar, mas para se ocultar atrás dos diálogo. Obras geniais de aventura e amor eram raras, com exceções como "Nana", de Jean Renoir, ou os "Espiões", de Fritz Lang. Mas a maioria dos filmes românticos mostrava atores que mexiam a boca pateticamente pendurados em letreiros intercalados.
E do lamentável balbúcio de peixes no aquário sem som passamos para o épico-romântico de Rouben Mamoulian, "Rainha Cristinha", quando Greta Garbo tem um dos seus maiores sucessos em par romântico com John Gilbert.
Fica então bem claro o que Hollywood queria. O filme é irresistível, contando a história trágica da rainha sueca que transava numa boa com súditos e cortesãos e que se apaixona pelo "salero" do embaixador espanhol vestido à Velasquez. A rainha chega a abdicar do trono para casar-se com ele.
Nessa hora, os diálogos já estão soando com toda a sucessão de slogans conservadores sobre a vida da liberada rainha, pois afinal ela era sueca. A história é a "americanização" desta liberdade castigada pelo destino. "Eu não sou uma rainha, sou apenas uma mulher" ou "perdoa-me por ser uma rainha!" são algumas das frases recolhidas.
Cristina encarna todo um mundo de libertação feminina, que começava a se esboçar nas roupas, no direito ao voto, na sexualidade, e que ela simbolizava lá no fundo dos séculos. A liberdade sexual de Cristina era um prenúncio do Código Hays. Mas a Cristina podia ser livre, pois afinal era rainha e sueca.
Aos poucos, o filme vai levando esta heróica amante e moderna governante para o castigo das mulheres que muito ousaram: o sofrimento e a solidão. A rainha despe suas roupas, abdica de seu poder fálico e vai definhando para uma sofrida mulher dominada do século 20. E fica bem claro que Hollywood nunca brincou em serviço; precisava do som para poder passar melhor sua patente propaganda e dos diálogos para apagar a possibilidade de um cinema de analogias.

Em dezembro, a Reserva Especial coloca no mercado "Grande Hotel" (1932), dirigido por Edmund Goulding, com Greta Garbo, John Barrymore, Joan Crawford e Lionel Barrymore no elenco. "Grande Hotel" ganhou o Oscar de melhor filme e gerou duas refilmagens e um musical na Broadway.

Vídeo: Rainha Cristina
Direção: Rouben Mamoulian
Elenco: Greta Garbo, John Gilbert
Produção: EUA, 1934
Vídeo: The Kiss
Direção: Jacques Feyder
Elenco: Greta Garbo, Conrad Nagel
Produção: EUA, 1929
Distribuição: Continental Home Video (tel. 011/284-9479)

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