São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A vida no porta-malas

MOACYR SCLIAR

Jornal na mão, o mecânico me mostrava a notícia sobre o casal que os assaltantes haviam encerrado no porta-malas de um Escort. É uma barbaridade eu disse. Ele concordou, com uma ressalva:
– É uma barbaridade quase inevitável. A gente tem de estar preparado para esta situação.
– Preparado? Preparado como? Ele me mostrou o seu carro, um velhíssimo e enorme Galaxie:
– Em primeiro lugar é preciso escolher um carro com porta-malas bem grande. Depois...
Abriu o porta-malas:
– Ponha a mão aqui.
O porta-malas era acolchoado, muito bem acolchoado.
– Viu? –Ele, triunfante.– A gente pode ficar deitado horas aí sem problema. Mesmo eu, que tenho problema de coluna. Já experimentei: é superconfortável. Mas tem mais.
Foi mostrando:
– Isto aqui é a luz de cabeceira... isto aqui é a prateleira para livros: eu gosto muito de ler, você sabe... Isto aqui é uma caixa de isopor com gelo, para a cerveja... Isto é o ar condicionado...
Não havia dúvida: ele tinha construído uma réplica perfeita daquilo que os japoneses popularizaram com o nome de hotel-cápsula. Só falta um telefone, observei. Espantou-se: telefone para quê?
– Para chamar a polícia, ora.
– Chamar a polícia? Você acha que com este conforto eu ia chamar a polícia? Muito perigoso, cara. Tiroteio, bala perdida... Você sabe como é.
Suspirou:
– Na verdade, só me faltam duas coisas. Uma é ser assaltado: até hoje ninguém se dignou a isto. Carro velho, você sabe...
– E a outra coisa?
– A outra coisa é uma namorada. Nunca tive. Mas se tivesse... Você já imaginou que festa a gente faria aí dentro? Lua-de-mel, cara. Lua-de-mel.

Texto Anterior: Assaltantes terceirizam roubo de arma e carro
Próximo Texto: Pesquisa propõe liberdade para assassinos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.