São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Otimismo maduro

ANTONIO KANDIR

Os resultados do segundo turno não poderiam ter sido mais favoráveis ao novo governo. FHC poderá contar com aliados nos principais Estados da Federação. Na medida do peso dos governadores sobre as bancadas no Congresso, a conquista eleitoral dos governos estaduais mais importantes cria condições favoráveis à consolidação da base de apoio político ao novo governo, tanto no eixo parlamentar quanto no eixo federativo.
Nos períodos democráticos depois de 1945, nenhum presidente iniciou seu governo em condições políticas tão favoráveis, à exceção do marechal Dutra, como observou recentemente o cientista político Bolívar Lamounier.
Em face desse quadro, cresce o otimismo em relação à capacidade do novo governo de conduzir, no próximo ano, o processo de reformas de que o Brasil precisa para consolidar a estabilização e voltar a crescer em bases firmes e com maior justiça social.
Trata-se de otimismo fundamentado, do qual compartilho. Não convém, no entanto, perder de vista as dificuldades que se colocam à frente.
A esse propósito, e aproveitando a comparação com o governo Dutra, vale a pena fazer os seguintes registros: 1) eram menos conflitivas as questões que defrontavam o país ao iniciar-se o governo Dutra; 2) a equação política era mais simples, em virtude não só da existência de uma burocracia federal mais articulada, como também da maior centralidade da disputa política no Congresso, onde dominavam três partidos (PSD, PTB e UDN); 3) a sociedade era bem menos complexa, sendo menor a multiplicidade dos interesses relevantes no jogo político.
Hoje, as questões decisivas têm alto teor conflitivo. Tome-se o exemplo da inadiável reforma do Estado, que implica alterações profundas na estrutura da administração pública, no regime do funcionalismo público, no pacto federativo e no sistema tributário.
Todas essas são questões sobre as quais há consenso apenas genérico, o que já é bom começo. Mas não se façam ilusões: quando passarmos para o nível específico das proposições, onde se definirá quem perde e quem ganha renda e poder, a luta natural e legítima de interesses irá exacerbar-se.
Acresce que a exacerbação inevitável do conflito de interesses ocorrerá num quadro institucional ainda frágil, herança do regime autoritário e da acomodatícia e arrastada transição democrática.
Os partidos, tendo baixa capacidade de agregar interesses no plano nacional, tendem a se fragmentar frente a questões que afetem interesses de peso, em especial os locais, regionais e corporativos.
Some-se um terceiro elemento à natureza conflitiva das questões e à fragilidade relativa das instituições públicas: a enorme complexidade do país, não apenas quanto às realidades sociais e regionais diferenciadas, como também quanto à multiplicidade de setores, corporações e grupos que conseguem vocalizar e tornar relevantes seus interesses no plano político, fenômeno que se acentuou muito nos últimos dez ou 15 anos.
Em resumo, a interpretação do quadro político nascido das urnas não pode abstrair esses elementos estruturais, muito menos a circunstância de que se terá de enfrentar, simultaneamente, as questões estruturais e o manejo de um plano de estabilização que vai bem mas ainda precisa ser consolidado.
O esforço de interpretação realista do quadro nacional é importante para orientar a ação política. Ele não deve inibir o ânimo de quem está engajado nas reformas que o Brasil reclama, não deve obscurecer o fato real de que o país tem nas mãos a oportunidade de dar um grande salto de qualidade, não desqualifica o otimismo em relação ao futuro.
Mas é absolutamente necessário para evitar-se dois riscos perigosos: a inflação de expectativas positivas, irmã mais velha da frustração, e as ilusões voluntaristas próprias ao poder político, parteira de tropeços desnecessários na transformação efetiva da realidade.

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