São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A razão satírica contra a loucura fanática

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 22/11/94

Neste texto, em lugar de "A saudável irreverência do satirista latino Luciano encontra eco no humor de Voltaire", leia-se "A saudável irreverência do satirista greco-latino Luciano...".
Os andarilhos interplanetários "perceberam uma pequena luz, a Terra. Isto causou piedade naquelas pessoas que vinham de Júpiter". Um animalzinho terrestre, filósofo, "olhou os habitantes celestiais de alto a baixo; sustentou que suas pessoas, seus mundos, seus sóis, suas estrelas, tudo tinha sido feito apenas para o homem. Após tal discurso, os dois viajantes jogaram-se um sobre o outro, perdendo o fôlego com o riso inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses..." (Voltaire, "Micrômegas").
O bom humor e o diálogo filosófico sempre tiveram um convívio difícil. A sua incongruência foi sublinhada por Luciano de Samosata, o pai da sátira menipéia. Segundo ele, o saber dogmático e o riso são eternos inimigos. O diálogo teórico é sério em demasia, "filosofando sobre a natureza e a virtude". A comédia zomba "dos que pensam coisas elevadas. Ela só tem um prazer: rir-se deles, empurrando-os para as liberdades dionisíacas" ("Prometeu em Palavras").
Ninguém melhor do que Luciano mostrou o ridículo do fanatismo. Poucos exibiram, como ele, as tolices dos seríssimos filósofos. Luciano foi seguido por Sêneca, Rabelais, Erasmo, Morus, Voltaire, Diderot, James Joyce, G. Grass. Nenhum pedante especulativo venceu esta via láctea risonha. A filosofia posterior a Hegel deseja ser coisa séria. Ela não admite o riso no santuário do Conceito. Salvando o diálogo, Hegel não soube o que fazer com sua irmã inimiga, a sátira.
Onde, na evolução do espírito, colocar o gênero satírico? Ele não pertence, dognatiza Hegel, à épica ou à lírica. "Não se produz, em seu âmbito, poesia verdadeira ou verdadeira obra de arte". Luciano, segundo Hegel, volta-se "com leveza contra tudo: heróis, filósofos e deuses... Mas se alonga e se perde no palavrório... tornando-se particularmente enfadonho". Estratégia hegeliana: quando enfrenta um texto indigesto à razão dialética, nosso pensador decreta que ele não tem graça.
Luciano "é tedioso" ("Lições sobre a Estética"). A metafísica francesa das Luzes não passa de "uma enxurrada de falatório tedioso" que nada conceitualiza ("História da Filosofia"). Luciano escreveu um diálogo hilariante sobre certa feira onde s mercadorias seriam...os filósofos das mais variadas tendências. É possível imaginar onde ele colocaria o grave Hegel.
A linguagem cristalina, notável em Luciano, impressionou as Luzes. Mas já Focion, na aurora da Renascença, via nele um excelente "estilo, servindo-se de vocabulário claro, próprio e que se distingue pela eficácia... Sua composição foi por ele realizada de tal modo harmonioso que o leitor não sente estar lendo prosa, mas uma doce melodia sem música, a qual se instila nos ouvidos". (Cf. E. Mattioli, "Luciano e o Humanismo").
Entre Focion e Hegel, quem possui bom gosto não tem escolha. Hegel considera Luciano e a sátira menipéia "tediosos". Seu juízo é o mesmo para as Luzes. Vejamos o nexo entre o elemento satírico e Voltaire. Este último chegou a ser conhecido como "um Luciano elevado à suprema potência da curiosidade, do saber, da ironia e da eloquência" (Émiole Egger). Razão e sátira constituem um só bloco. Voltaire e Luciano mostram, nos seus textos, o trabalho dissolutor das crenças carcomidas, devastando o irracionalismo que domina os cérebros do vulgo e dos filósofos dogmáticos.
Ao tecer considerações sobre Swift, outro discípulo de Luciano, Basil Willey aponta um traço crucial das técnicas satíricas. Nelas, o alvo maior é nos forçar a ver"coisas reais e familiares como se fosse a primeira vez, como se nós fôssemos visitantes de um outro planeta... ou de algum quartel da Razão". O escritor retira o objeto satirizado "da sequência familiar que normalmente o reconcilia conosco, e nos faz vê-lo como ele é em si mesmo, como, no conto de Andersen, a criança viu o imperador nu".
O inesperado no habitual: dominando esta técnica, o humorista filosófico desmistifica a ordem existente, solapa as bases do autoritarismo. A razão satírica impera no discurso das Luzes, nos textos de Voltaire, Diderot, d'Alembert, e de seus pares. O pensamento conservador combateu a crítica, impediu que os homens olhassem com estranheza os absurdos do mundo. Segundo Burke, o pai do conservadorismo, "a política não deve se adaptar à racionalidade humana, mas à natureza humana, da qual a razão é apenas uma parte".
A sátira lucianesca, no pólo contrário ao de Burke, ajuda-nos a ver o que julgamos "natural" com novos olhos, os da razão sem peias e hostil aos dogmas. Nela, os personagens encarregados de nos fazer enxergar de modo diferente são apresentados através de três modos: por "katabásis", indivíduos vivos se dirigem para o mundo inferior (como o herói Menipo, que desce ao Hades).
Por "anabásis", os personagens críticos elevam-se ao mundo superior e de lá observaram os costumes ridículos dos humanos (Menipo sobre a Lua, onde vê os homens como formigas atarefadas e tolas). A terceira técnica é apresentar os próprios mortos conversando sobre os absurdos observados no mundo, como ocorre no "Diálogo dos Mortos". Esta maneira de distanciar-nos do que vivemos, possibilitando-nos encarar os "fato" por outros ângulos, recebeu, na fala de Bertolt Brecht, o nome definido: "Verfremdung".
Em Voltaire, esses artifícios do estranhamento encontram-se em textos como a "Conversa de Luciano, Erasmo e Rabelais nos Campos Elíseos" (1765). Ali, o sarcástico Luciano exclama, após a narrativa de muitas tolices do catolicismo político: "Vocês ganham de nós em loucura! As fábulas de Júpiter, de Netuno e de Plutão, das quais nós rimos, eram respeitáveis se comparadas às tolices que enfatuam o seu mundo".
Sería possível indicar inúmeros textos voltaireanos que mobilizam estes métodos de estranhamento. Não o podemos fazer aqui. Todos estes pontos são analisados por L. Schenk, em texto até hoje estratégico sobre "Luciano e a Literatura Francesa na Era das Luzes" (1931). São notáveis as semelhanças entre a "História Verdadeira" e o "Cândido". Em seu texto, Luciano faz alguns homens, num barco, alçar vôo rumo à lua e aos planetas, ridicularizando historiadores e toda a raça dos pedantes.
O tirano, sobretudo o que manipula a religião, pensa Voltaire, "deseja comandar tolos, e acredita que os burros obedecem melhor do que os demais". Quando os homens comuns acreditarem que a ignorância não paga a pena, e que as perseguições são abomináveis, surgirá uma opinião pública livre e tolerante. (Dicionário Filosófico, "Preconceitos").
O supersticioso é governado pelo fanático e torna-se fanático. A superstição é "doença do espírito". O político conseguiria combatê-la? "Este problema é espinhoso, trata-se de perguntar até que ponto deve-se fazer uma punção num hidrópico. Ele pode morrer na mesa cirúrgica. Isto depende da prudência do médico". Se o número de supersticiosos diminuir num país, as inflações do fanatismo e das desgraças nele desaparecem.
Estes são problemas perenes, até hoje enfrentados por nós. Como exemplo, temos a tortura. Sempre que existe asneira política, religiosa, acadêmica, há fanatismo e intolerância nas massas. Estas, por uma palha contra os preceitos estabelecidos, exigem que os desviantes sejam tratados "exemplarmente". (Cf. Dicionário Filosófico, "Tortura"). No Brasil, república dos linchadores, entendemos as teses de Voltaire.
Tudo, nos tempos modernos, depende da seriedade. Parece que o mundo foi vencido pelo virus hegeliano. Perdeu-se, com isto, a ponta crítica que lanceta as bobagens do Estado e dos civis, laicos ou religiosos. O homem, desde o século 18, cresceu em ciência e técnica, abafando o riso dos deuses e dos satíricos. O resultado encontra-se na tolice que aumenta em escala planetária, com seitas malucas e cultos aberrantes arrebanhando multidões.
No Brasil, vencem as cacofanias dos que enganam a piedade popular e vampirizam a crendice das massas. Nas Américas "pastores" berram sua intolerância na mídia, espalham superstição, intoxicam almas. No Oriente e na África, regimes teocráticos deformam seres humanos em nome de um Deus sanguinário. Na Europa, o "neo" nazismo promove o retorno dos energúmenos racistas, apressando a morte do pensamento.
Não se critica, nas rodas intelectuais, os milagreiros cujas anedotas fariam as delícias de Luciano, Rabelais, Erasmo, Voltaire, Diderot. Em plena São Paulo moderna já estão sendo vendidos, nos lucrativos escritórios das seitas, apartamentos paradisíacos. O seu preço aumenta se eles estiverem próximos à morada de Jesus Cristo. As chaves são entregues pelos "pastores" com honestidade, depois da fatura paga... Esta história, como a de Luciano, é verdadeira. Como é efetiva a ignorância em nosso país.
Aqui, as universidades são asfixiadas criminosamente pelos governos e astrólogos norteiam as mentes incultas. No Brasil, quem não acredita em milagre perde eleições. Urge purificar a fé pública e imprimir os iluministas franceses. Antes de escurecer os cérebros dos estudantes com o lero-lero irracionalista, ponha-se diante de seus olhos a saudável irreverência das Luzes, a razão satírica que atenua a loucura séria do fanatismo.

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