São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O Ingênuo" e as aventuras da formação

FRANKLIN DE MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O texto que se segue é um apontamento de leitura, uma anotação à margem do ensaio "Le Fusil à Deux Coups de Voltaire" (in "Revue de Métaphysique et de Morale", julho-set. de 1966, nº 3, Paris, A. Colin), no qual Jean Starobinski faz uma análise estilística de "O Ingênuo", último grande conto escrito por Voltaire, cuja primeira publicação é de 1767. Minha finalidade aqui é precisar, segundo referências metodológicas estranhas ao texto de Starobinski, de que modo "O Ingênuo" passa binariamente do riso às lágrimas.
"Hurão ou o Ingênuo" se passa sob o reino de Luís 14. Um jovem hurão, curioso por conhecer o mundo, deixa a América, segue para a Inglaterra e acaba desembarcando na Baixa-Bretanha, onde é recebido pela boa sociedade local: o Prior de Kerkabon, sua irmã, o Abade de Saint-Yves, a jovem e bela irmã do abade etc.
O Ingênuo, assim chamado porque só diz aquilo que pensa e só faz aquilo que quer, não tarda em mostrar por que merece a alcunha: por meio de uma inteligência não corrompida pelos preconceitos, começa a nos revelar o absurdo de certas práticas locais, principalmente religiosas. Desde logo, o jovem selvagem e Mlle. de Saint-Yves se sentem atraídos e este sentimento não demora em se tornar uma paixão.
Por outro lado, surpreendentemente, o Prior e sua irmã o reconhecem como um sobrinho, desaparecido com os pais em expedição na América: o Ingênuo ganha assim uma família. Para convencê-lo a se deixar batizar, escolhem Mlle. de Saint-Yves para sua madrinha: o Ingênuo, cujo nome cristão passa a ser Hércules de Kerkabon, ganha agora uma religião. Em seguida, tenta possuir aquela que ama sem qualquer cerimônia, como bom selvagem que é, mas o irmão dela o impede. Descobre assim que não pode desposar a amada, pois um artigo do direito canônico proíbe o casamento entre madrinha e afilhado.
Enquanto isso, o Abade, que tem planos diferentes quanto à irmã, manda-a para um convento. Desesperado, o Ingênuo passeia pela praia e então tem a ocasião de repelir uma invasão inglesa na Baixa-Bretanha; torna-se herói, ganha afinal uma pátria. Decide incendiar o convento para libertar a amada, mas é convencido a ir para Versailles a fim de obter reconhecimento pelos serviços prestados e de conseguir assim a mão da noiva. Quando chega à corte, além de não obter o que pretendia, é trancado na Bastilha, acusado de espião huguenote.
No cativeiro ocupa a mesma cela do jansenista Gordon, com quem estuda geometria, física, metafísica, história e de quem consegue modificar algumas opiniões. Mlle. de Saint-Yves escapa do convento e parte para Versailles. Intercede pelo amado junto ao subministro Saint-Pouange, que lhe faz propostas desonestas em troca da liberdade do Ingênuo.
Mlle. de Saint-Yves resiste, mas acaba por sucumbir. Em meio ao júbilo pela libertação do hurão, Mlle. de Saint-Yves não resiste à vergonha, cai doente e morre. Arrependido, Saint-Pouange comparece ao funeral e para reparar o mal que causara toma Hércules de Kerkabon sob sua proteção, fazendo dele um excelente oficial. Com o passar dos anos, que "tudo suaviza", o Ingênuo se torna "ao mesmo tempo um guerreiro e um filósofo intrépido".
Segundo Jacques van den Heuvel ("Voltaire Dans Ses Contes, Paris, Armand Colin, 1967), esta história oferece "um parentesco bastante notável" com o "Candide". (...) Num plano mais geral, a estrutura de "O Ingênuo" reproduz a fórmula do conto filosófico voltairiano que, ainda segundo Heuvel, o filósofo descobriu nas "Cartas Persas" de Montesquieu e na sua própria experiência de exilado na Inglaterra: ela se baseia no "procedimento do 'dépaysement' ", na "transplantação instantânea 'das personagens' para uma realidade estranha, e que é preciso a todo preço, entretanto, assimilar". (...)
Conforme lembra Heuvel, existe uma enorme controvérsia entre os estudiosos sobre o sentido de "O Ingênuo". Será que Voltaire teria pretendido contestar a concepção rousseauniana de homem natural e estado de natureza? Conteria "O Ingênuo" uma crítica ao cristianismo em geral, criticaria apenas os parlamentos jansenistas ou ainda apenas as intrigas dos jesuítas? Sem dúvida, há no conto um pouco de tudo isso. Mas sem recusar completamente os demais sentidos, o ensaio de Starobinski privilegia a última interpretação. Para aqui chegar, porém, percorre um longo caminho, difícil de resumir devido a seus meandros técnicos.
Starobinski parte da análise estilística de um fragmento de "O Ingênuo" a fim de mostrar que o conto está marcado pela "dualidade" em todas as suas combinações possíveis. (...) Deixando de lado as dualidades morfológicas, sintáticas ou semânticas minuciosamente destacadas por Starobinski, vou logo a uma das mais importantes, sobre a qual o romance é construído e que, aliás, é romanesca por excelência: "o contraste de um indivíduo isolado e de uma coletividade, estranhos um ao outro". Como bem nota Starobinski, esta inadequação é fonte de conflito para o herói e de reflexão para o narrador (sobre o homem em geral, sobre o selvagem e sobre os abusos da sociedade atual) e, deste modo, está na origem de uma das dualidades mais importantes do conto: a dualidade "entre o plano da narrativa e o plano da escrita". Eis resumidamente a leitura de Starobinski. Gostaria apenas de precisar um pouco mais de que modo "O Ingênuo" oscila do riso às lágrimas.
A questão não é completamente desimportante, pois diz respeito à diferença de tons que divide nitidamente o conto em duas partes. A primeira, cujo cenário é a Bretanha, vai da chegada do hurão à sua partida para a Corte e tem uma evidente intenção satírica: por meio do olhar "ingênuo" do protagonista, certas cerimônias católicas (o batismo, a confissão) se revelam sob um aspecto cômico. A segunda se passa em Paris e Versailles, vai da chegada do Ingênuo à Corte até seu engajamento como oficial. O tema aqui é o da "inocência punida" –na figura do Ingênuo, que é embastilhado, e na de Mlle. de Saint-Yves, cuja virtude é sacrificada.
Assim, da atmosfera cômica passamos à patética. Se recorrêssemos aos termos consagrados por Schiller, diríamos que a primeira parte é uma sátira zombeteira (o autor assume o tom da alegria e considera a realidade que o desagrada por meio do entendimento), enquanto a segunda é uma sátira patética (o autor se exprime no tom grave e apaixonado da vingança, aspirando a transformar pela vontade a realidade que o choca).
Precisando um pouco mais, e recorrendo agora à tipologia romanesca de Mikhail Bakhtine, talvez se pudesse afirmar que a atmosfera cômica da primeira parte reproduz inúmeros ingredientes do romance grego ou de aventuras ("barroco" no século 17). (...) Mas falta a "O Ingênuo" aquilo que Bakhtine chama de "essência do tempo das aventuras". De fato, o romance de aventuras é construído no hiato de tempo compreendido entre o encontro dos namorados e seu matrimônio, mas "trata-se de um hiato extratemporal entre dois momentos de um tempo biográfico". Por que extratemporal? Porque o tempo passa impunemente sobre os heróis, não deixando traço algum em suas vidas ou caracteres: o amor de ambos não muda em nada, não diminui, não aumenta, não se corrompe, não se aperfeiçoa. (...) Ao conto de Voltaire falta obviamente o ponto de chegada: num certo sentido, portanto, pode-se dizer que "O Ingênuo" reproduz parcialmente a estrutura dos romances de aventuras. Ou então, se assim quisermos, que Voltaire começa a parodiar um romance de aventuras e, mal esboçada a paródia, interrompe-a. (...)
É justamente o que se passa na segunda parte do conto de Voltaire, quando o leitor se vê não apenas diante da educação didático-pedagógica do Ingênuo (secundariamente da reeducação do jansenista Gordon), mas também da educação sentimental de Mlle. de Saint-Yves (situações análogas e invertidas, diria Starobinski).
Restaria perguntar por que exatamente Voltaire teria conferido a "O Ingênuo" esta forma híbrida. A perfeita adequação entre forma e conteúdo em "Candide" –onde a crítica do otimismo metafísico leibniziano é veiculado pela paródia do romance barroco que, como é voz corrente no século 18, é fabuloso, quimérico, inverossímil– mostra que Voltaire costumava escolher com enorme precisão a forma de seus contos.
Com certeza, como se viu há pouco, o hibridismo expressa à sua maneira a sabedoria binária de "O Ingênuo". Mas será que seu sentido se esgotaria aqui? Como se sabe, entre fins do século 17 e a primeira metade do século 18, existe uma vasta literatura que trata de forma romanesca o tema do homem natural. Pois bem, até que ponto iria a cumplicidade entre tal tema e o romance de aventuras? Ao retomar a paródia do gênero em 1767, até que ponto Voltaire não estaria pretendendo denunciar este tipo de literatura? Eis o que seria preciso examinar no detalhe. De qualquer modo, desde já estas perguntas acabam dando maior relevo ao tema do homem natural e do estado de natureza em "O Ingênuo" de Voltaire.

Texto Anterior: FILÓSOFO ESCREVE SOBRE O BRASIL
Próximo Texto: A razão satírica contra a loucura fanática
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.