São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A violenta ruptura de Gonçalves Dias

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 20/11/94

Neste ensaio, devido a um erro do original, corrigido pelo autor, saiu publicado "L'homme est un apprenti, le malheur est son maître", onde se deveria ler: "L'homme est apprenti, la douleur est son maître". Na mesma página, devido a um erro de digitação, onde saiu publicado, "Como tu és belo! Que negros são teus cabelos (Concentrando-os)", leia-se: "(Concertando-os)". Na página 6-9 (continuação), onde se lê "O verbo amar... é conjugado manhosamente por Francisco, um filão que não o é...", leia-se, "um vilão que não o é..."
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As quatro peças deixadas por Antonio Gonçalves Dias (1823-1864), "Beatriz Cenci", "Patkull", "Leonor de Mendonça", "Boabdil", foram compostas entre 1843, quando ele, aos 20 anos, ainda estudava em Coimbra, e 1850, já na fase final da sua breve e brilhantíssima carreira de poeta e dramaturgo. Inscrevem-se, portanto, as quatro, no mesmo ciclo cronológico e artístico dos dramas de Martins Pena e Burgain.
Tirando-se poucas exceções, poder-se-ia dizer, generalizando, que tais peças se passam na Europa, quando não especificamente em Portugal. Contemplam o passado, não o presente, centrando-se sobre o período que vai do declínio da Idade Média até o alvorecer das nacionalidades modernas. Regem-se, no campo social e moral, pelas leis da cavalaria, revistas e embelecidas pelo Romantismo. As personagens principais, as que dão título às peças, são retiradas da história universal –e esta relação com o mundo exterior, supostamente refletido no imaginário da cena, dava uma garantia de veracidade e autenticidade ao espetáculo. O público, quando via este tipo de peça, saía do teatro reconfortado com a idéia de que alguns daqueles arrojados lances cênicos tinham de verdade acontecido. O palco desejava ter, sob a aura da obra de ficção, o calço da realidade. Mas o panorama histórico esboçado no palco não servia senão de motivo para que se relatasse uma história de amores contrariados, ou seja, de oposições pessoais carregadas de emocionalidade. Em relação ao texto, dominava a prosa, que entre 1830 e 1840 fora substituindo aos poucos e sem alarde o verso tradicional, até mesmo na dramaturgia de poetas franceses como Victor Hugo e Alfred de Vigny.
Fixadas tais coordenadas, convém estabelecer logo o que distingue Gonçalves Dias. Em primeiro lugar, destacam-se a vivacidade e a energia da expressão, juvenilmente enfáticas por vezes, mas tendentes à síntese poética, sem as molezas e os desperdícios da palavra falada. É de um poeta a voz que ouvimos, embora fazendo uso da prosa. Em segundo lugar, vem o centro dramático, que se desloca da preocupação com o enredo bem urdido, característico do melodrama, para a compreensão moral e psicológica das personagens. Estas são concebidas como homens e mulheres, ainda que altamente idealizados, não como joguetes postos a serviço do enredo. O ponto de partida da peça são eles, os protagonistas e antagonistas, não os sobressaltos proporcionados pela engenhosidade dos incidentes cênicos. E, à medida que aumenta a complexidade das criaturas postas no palco, vítimas não raro de forças internas contraditórias, dissolve-se a divisão nítida entre bons e maus, inocentes e culpados.
O amor entre um homem e uma mulher, se já se manifestava em Burgain e Martins Pena, era sobretudo como parte de um conflito armado para instigar e surpreender o público. Nas peças de Gonçalves Dias, ao contrário, o sentimento amoroso é o alvo que ocupa o pensamento do autor, a razão pela qual ele escolheu aquela determinada situação dramática. Além de gerar a ação, ocasionando-a e dinamizando-a, a paixão afirma-se como um valor em si mesma, uma das justificativas, porventura a maior, da existência humana.
Por fim, nos dramas do poeta maranhense, não se percebe a presença de Deus, da Divina Providência, encaminhando os fatos para o desfecho feliz. No universo cênico imaginado por Gonçalves Dias parece esvoaçar sempre uma dúvida, uma hesitação, entre o determinismo moderno, que considera o homem não só determinado mas também determinante, e a antiga fatalidade grega, o "fatum" latino –fado, em português–, indiferente ou mesmo hostil a certas pessoas, a certas famílias, marcadas para a desgraça.
É difícil não relacionar este modo de pensar com as várias queixas e confidências feitas por Gonçalves Dias no correr dos anos. Mestiço, filho natural, pobre, logo órfão de pai, separado da mãe, numa sociedade que procurava sedimentar-se e erguer-se como a brasileira do século 19, seria deveras extraordinário que nada disto extravasasse para as suas fontes inspiradoras. A sua obra literária é singularmente destituída de ressentimentos que poderiam afetá-la artisticamente. Mas não é provável que sofrimentos sobrevindos desde a infância, obstáculos vencidos com força e gentileza de ânimo, não lhe tenham causado qualquer abalo, não lhe ajam conferido um substrato dramático com que alimentar a parte material da sua ficção.
"L'homme est un apprenti, le malheur est son maŒtre", promulgou poeticamente Alfred de Musset. Nem eram outras a prática e a teoria do Romantismo que, fugindo à objetividade clássica, fundia vida e obra de arte no mesmo candente molde. Escrevia-se romanticamente porque vivia-se e sentia-se romanticamente. Para se certificar basta ler as cartas legadas por essa geração desmedida nas palavras e nos gestos, que nunca se pejou de confessar-se em público. Veja-se como Gonçalves Dias comentou, a um amigo, os anos de adolescência passados em Portugal: "Triste foi minha vida em Coimbra, que é triste viver fora da pátria, subir os degraus alheios e por esmola sentar-se à mesa estranha. Essa mesa era de bons e fiéis amigos; embora! O pão era alheio, era o pão da piedade, era a sorte do mendigo". Alguma coisa deve ter permanecido nele desta precoce e triste experiência. Antonio Henriques Leal, o seu primeiro biógrafo, adverte "quem o visse prazenteiro, se não galhofeiro, a pairar-lhe de contínuo nos lábios o riso, (...) ignoraria os esforços que empregava para conservar essa placidez aparente". E cita outra carta do poeta, das mais reveladoras: "há instantes tenebrosos em que é preciso um grande esforço de virtude para que se não ceda à vertigem –à atração do suicídio"(1).
O jovem Martins Pena e o Burgain da maturidade, para voltar a eles pela última vez, cresceram à sombra do melodrama, que dominava e dominaria por largo tempo os palcos nacionais. Já Gonçalves Dias, talvez por ter estudado em Portugal, onde era muito maior o fluxo de informações artísticas, situava-se bem mais próximo das matrizes cultas da moderna sensibilidade artística, tal como ela se formara nos primeiros decênios do século 19. Até na escolha dos seus protagonistas ele pouco tem de periférico.
Se "Patkull", enquanto assunto histórico, pode parecer um tanto fora da órbita teatral, que girava então em torno de Paris e do pensamento francês, e se "Leonor de Mendonça" legitimava a sua entrada no palco por envolver num crime de morte a mais elevada aristocracia portuguesa, o mesmo não se dirá dos outros dramas que escreveu. O tema de "Beatriz Cenci" já fora trabalhado, por exemplo, por Shelley, na tragédia "The Cenci", de 1819, e por Stendhal, que publicou a sua crônica, "Les Cenci", na lidíssima "Revue des Deux Mondes", entre 1837 e 1839. Sem falar no belo quadro de Guido Reni (ou atribuído a ele), que circulava correntemente na Europa através de gravuras. E "Boabdil", o derradeiro rei de Granada ("el chico" para os espanhóis, o "desditoso" para os árabes), havia figurado no "Gonzalve de Cordoue", escrito por Florian em fins do século 18, mas reeditado em 1828 (2); no famoso "O Último Abencerrage", de Chateaubriand, de prolongada repercussão na memória de Portugal e do Brasil; e nas "Narrativas da Alhambra", publicadas em 1832 pelo escritor americano Washington Irving.
Essa impressão que Gonçalves Dias estava perto do centro da atualidade européia aumenta se lembrarmos que duas peças de sua autoria foram antecedidas de pouco por crônicas saídas em revistas portuguesas: a primeira, "Beatriz Cenci", em "O Correio das Damas", a 1º e 15 de novembro de 1837; a segunda, "Leonor de Bragança" (o título nobiliárquico de Leonor de Mendonça), na "Revista Literária", tomo primeiro, em 1838. Ano este em que, por coincidência, Gonçalves Dias chega a Coimbra. Não que se devam considerar tais crônicas, só por isso, fontes diretas das peças brasileiras. Mas não há dúvida que elas reforçam as afinidades existentes entre o poeta brasileiro e os assuntos do momento.
Os seus textos teatrais, escapando à tragédia, pelo formato e pelo uso da prosa, e ao melodrama, por unir no desfecho amor e morte, são os primeiros, no Brasil, que se podem classificar seguramente como dramas românticos.

2
Ao chegar de volta ao Brasil em 1845, após quase sete anos de Coimbra, onde fez cursos que hoje chamaríamos de secundários e superiores, Gonçalves Dias já trazia na bagagem não apenas poesias, entre as quais a "Canção do Exílio", mas também dois dramas, "Beatriz Cenci" e "Patkull". São obras da juventude, imaturas, que só seriam publicadas depois de sua morte (3). Mas o havê-las guardado por tanto tempo mostra que ele nunca se despregara de todo desses textos juvenis, seja porque lhe trouxessem recordações, seja porque pensava em retomá-los e desenvolvê-los algum dia, dando-lhes feições definitivas.
As liberdades tomadas pelo poeta, em "Beatriz Cenci", ao passar da realidade histórica (4) para a ficção teatral, são tantas que desencorajam considerações a respeito. Qualquer que tenha sido o seu fio condutor, ele o torceu e o retorceu até que, ao perder o feitio primitivo, pudesse servir aos fins dramáticos que tinha em vista.
Beatriz, filha do primeiro casamento, e Lucrécia, segunda esposa de Francisco Cenci, continuam a ser, no drama, as idealizadoras do seu assassínio, fato ocorrido no Castelo de Petrella, próximo de Nápoles, no ano de 1598. Mas, dos dois executores materiais do crime, ambos na vida real casados e movidos ao menos em parte pelo dinheiro, um, Olimpio, transfigurando-se na peça em padre e irmão de Lucrécia, nega-se a participar do projeto; e o outro, Marcio, ascende à posição de amante de Beatriz, não no sentido moderno, que ele talvez tenha sido na realidade, mas no sentido tradicional na tragédia francesa, daquele que ama e é amado, mesmo que seja de um amor puro, ainda não contaminado pelo ato sexual.
Este seria o lado bom das personagens postas em conflito. Assistimos, espectadores privilegiados que sempre somos no teatro, ao alvorecer de um sentimento que conservará até o desfecho algo de adolescente e superior, não obstante as misérias humanas que tem de enfrentar. Se o primeiro encontro entre Beatriz e Marcio dá-se indiretamente, à maneira italiana, através de uma serenata noturna, não demora para que o amor se declare de viva voz, com uma espontaneidade e franqueza que contrasta com o decoro clássico, ainda mais porque a iniciativa amorosa não se restringe ao homem. A moça encanta-se de imediato com a presença do rapaz, até então conhecido apenas pela voz, e não esconde o seu prazer: "Senta-te. Deixa-me bem ver o teu rosto; andava sequiosa por to ver bem de perto. (Encarando-o) Como tu és belo! que negros são teus cabelos (Concentrando-os). Quero anelar-tos bem anelados em roda de tua cabeça" (5).
Antes, é verdade, Marcio já abrira o coração a Beatriz, aliás de um modo típico da dramaturgia gonçalvina, associando logo –e romanticamente– amor e morte: "Doce seria viver contigo, só contigo: porém mais doce, oh! mil vezes mais doce, morrer aqui, a teu lado, em teus braços, deixando nos teus olhos a derradeira chama dos meus olhos e nos teus lábios o derradeiro suspiro dos meus lábios".
Se esse é o lado auspicioso da vida, o bem que se deseja aos 20 anos –viver ou morrer de amor–, o lado maligno manifesta-se com outra complexidade. Francisco Cenci ostenta na peça muitos dos variados vícios que lhe foram imputados no processo criminal que se seguiu à sua morte, inclusive o que deu celebridade aos Cenci –o incesto. Ele é mau marido (Lucrecia não lhe perdoa o tapa que levou no rosto) e foi mau

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