São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A violenta ruptura de Gonçalves Dias

pai para Beatriz, mantendo-a presa, enquanto ela não desabrochou como mulher, ganhando a fama –diz Visconti na peça– de ser "a mais formosa donzela de toda a Itália". Francisco reconhece nela, além dessa beleza física, a beleza moral: "Como tu és bela! E como através de teus olhos tão puros, e do teu rosto tão formoso, se lê a tua alma ainda mais formosa e mais pura do que os teus olhos e do que o teu rosto!"
Já começou o jogo da sedução. A castidade feminina, representada pela virgindade, sendo uma interdição só desfeita pelo sacramento do matrimônio, funciona, por outro lado, como um acicate do desejo sexual. É a dialética romântica entre pureza e impureza, na qual o fruto proibido, por sua própria sacralidade, passa a ser a tentação profanatória maior.
O diálogo entre pai e filha sabe esconder bem a princípio os seus propósitos:
"D. Francisco: Tu amas, Beatriz?
Beatriz: Muito, muito.
D. Francisco: Sim, quero que me ames muito, extremosamente, com todas as forças da tua alma, que eu preciso de teu amor".
O verbo amar, dos mais ambíguos, subindo das acepções materiais às espirituais, do amor carnal ao amor divino, é conjugado manhosamente por Francisco, um filão que não o é, nas versões habituais, por não ter a pequenez das motivações correntes, por encarar o exercício do mal como um entretenimento da inteligência para si mesma e como um escárnio moral para os outros. Por dentro das palavras enganosas que dirige à filha parece subsistir um germe de narcisismo: "Quero extasiar-me de te ver, quero-me rever na tua beleza".
Daí ao incesto é um passo, que ele dá na teoria antes de transitar para a prática. "Escutai-me", diz Beatriz a Marcio, em frente ao pai: "Esse homem por minha desgraça me achou formosa e jurou manchar-me. Não se lhe deu de eu ser sua filha, leu, para me seduzir, histórias de outros tempos, contou-me lendas de santos incestuosos por tal arte que quem os ouvisse os julgará santos pelo crime e não apesar dele".
Ainda não é tudo. No fundo da personalidade evasiva e tortuosa de Francisco, como Gonçalves Dias a desenhou, existe outro traço negativo: a sensação de vazio existencial, a convivência com o nada interior. Se matasse Marcio, confidencia ele a Paulo, um servidor, "talvez que sentisse alguma coisa, e eu preciso de sentir, porque tenho medo do deserto do meu coração, que é a morte, porém a morte dentro de nós mesmos, a morte gelada, hedionda, monstruosa, paralisia da alma, que se ergue incomensurável, indefinível, como um fantasma de terror!".
Esta "paralisia da alma", o vazio do coração, a ausência de qualquer possibilidade de sentimento real, "o mal do século" para os românticos, o pecado da acídia para a teologia cristã, transparece em versos da mocidade de Gonçalves Dias, um dos quais traz esta epígrafe de Sainte-Beuve: "Mon Dieu, fais que je puisse aimer!" (Meu Deus, faça com que eu possa amar!).
Se Beatriz, no drama, é o amor, como dádiva, talvez Francisco seja exatamente o oposto, a carência de amor que não seja a si mesmo. Ele não vive propriamente, no sentido de paixão ou de ato espontâneo. Representa sucessivos papéis de comédia, de vilão sutil e sorridente, encenando uma série de situações que são dramáticas para os demais e que terminarão tragicamente com a sua morte. Desafia a Marcio (não o matando quando o tem a sua mercê), obriga a esposa a ser conivente com o incesto, compelindo-a a ir ao baile onde Beatriz será vilipendiada. E seduz a filha com expressões de carinho antes de submetê-la sexualmente pela força.
Demonstra mais de uma vez não temer os dois jovens que tramam às suas costas, porque já passou incólume por perigos maiores. E não deixa de ter razão, já que no desenlace –ao contrário do que sucedeu na Itália– é ele que mata Marcio. O único erro que comete, na peça, é não contar com o tino, a astúcia de Lucrécia, que acrescenta, ao punhal do rapaz, o veneno. É este o momento em que, textualmente, a esposa vinga-se do marido, a mulher do homem, a escrava do Senhor: "Dona Lucrécia: Assim pois o nobre, o valente, o poderoso D. Francisco, o terror dos salteadores, o senhor da cúria romana, o vilão que a seu talante oprime a nobreza de Roma e de Nápoles, o vilão que chegou a emparelhar com os nobres, graças ao fruto das rapinas de seu pai, que de um vil barqueiro tornou-se um vil usurário, e de um vil usurário, um nobre mais vil ainda ... O nobre D. Francisco!... não viverá nem mais um dia, porque foi do alvedrio de uma mulher assinar-lhe a sua última hora! Pensastes alguma vez nisto?".
Mas o homem, agarrando a mulher pelo braço, ameaçando-a com um punhal, retoma os seus direitos –o direito do mais forte–, numa cena final que antecipa de perto a de "Leonor de Mendonça":
"D. Francisco: Pedí perdão a Deus, Senhora, ides morrer.
D. Lucrécia: Perdão, Senhor!
D. Francisco: A Deus, pede-o a Deus que eu não te perdoarei.
D. Lucrécia: Mas vós não vedes que é impossível!... que eu não posso morrer assim...
D. Francisco: Pede perdão, infame!
D. Lucrécia: Oh! Senhor, eu vô-lo peço, por Deus, por tudo, fazei de mim o que vos aprouver, mas não me mateis!
D. Francisco: Perdão.
D. Lucrécia: Perdão, Senhor!
D. Francisco: A Deus.
D. Lucrécia: Perdão.
D. Francisco: A Deus, pede-o a Deus.
D. Lucrécia: Perdão.
D. Francisco: Oh! ... (Dá-lhe uma punhalada e cai ao lado dela).
D. Lucrécia (caindo): Perdão meu Deus!".
Não importa a licença poética tomada aqui (mais uma) em relação aos acontecimentos históricos: Lucrécia, de fato, foi condenada à morte e executada juntamente com Beatriz. O que chama fortemente a atenção no drama, mais do que a questão do feminismo, embora esta apareça claramente exposta, é a desenvoltura do texto ao lidar com a moralidade pública.
O incesto e o parricídio já tinham perpassado por peças românticas francesas, como "A Torre de Nesle", de Alexandre Dumas, e "Lucrécia Borgia", de Victor Hugo (6). Porém sempre indiretamente, sem plena consciência do ato ou sem que ele se concretizasse, de modo a não afrontar a platéia. "A história dos Cenci –escreveu Shelley no prefácio de sua tragédia– é na verdade eminentemente terrível e monstruosa: a mera exibição dela no palco seria insuportável. A pessoa que tratasse de tal assunto deveria aumentar a idealidade e diminuir o horror dos acontecimentos reais, fazendo que o prazer da poesia existente nesses tormentosos sofrimentos e crises possa mitigar a dor de contemplar a deformidade moral que lhes deu origem" (7).
A peça nacional, talvez por uma certa inocência, pela idade do autor, pega o touro pelo chifre: incesto seguido por parricídio, nem mais nem menos. Consumado o crime, terminado está praticamente o drama, sem sequer aguardar o julgamento dos culpados. E é difícil dizer o que mais fascinou Gonçalves Dias nessa história escabrosa, onde não há inocentes, se a imagem da filha, cedo aureolada na Itália como mártir, por sua beleza, pelas indignidades sofridas e pela altivez revelada durante o processo, ou se a figura entre sinuosa e sinistra do pai, o individualismo renascentista levado às últimas consequências morais –o Mal em todo o seu esplendor romântico. Beatriz, de resto, desculparia ao pai até o incesto, menos ver-se aviltada aos olhos de Marcio: "Eu lhe perdoaria tudo! (...) Mas por que me obrigou ele a corar diante de Marcio, de meu nobre Marcio que eu tanto amava, que eu ainda amo tanto?".
Admitem-se os excessos do sexo, não a desfeita, o agravo deliberado, a humilhação em face de quem se ama. Como no caso de Lucrécia, que responde com o assassínio ao tapa que Francisco lhe deu no rosto, não é a moral que se acha em jogo e sim o código da nobreza. Pode-se ferir o outro, não menosprezá-lo, diminuí-lo socialmente. O pundonor, o chamado ponto de honra, sendo forma, sobrepõe-se em tais circunstâncias ao conteúdo.
"Beatriz Cenci" possui as idéias, as personagens, o enredo de um drama forte e original. Se não o é, deve-se a ter ficado no estágio de esboço, sem o desenvolvimento pleno de suas virtualidades. Tudo passa depressa demais, incidentes, características humanas, efeitos de ironia dramática, sem o tempo necessário para se aprofundar, sem preparação e amadurecimento das situações. Não se entende, por exemplo, por qual razão Francisco, para seduzir Beatriz, tanto necessitava de uma festa, e da presença nela de Lucrécia, quando o seu intento, desvendado logo depois, é violentá-la. Este centro dramático, além do mais, surge recoberto por uma pretensa e superficial camada de engenhosidades cênicas, bastante parecidas com as de outras peças brasileiras da época. Não lhe faltam, para tanto, nem serenatas, nem portas secretas, nem pessoas vestidas de negro, nem máscaras, nem desafios de duelo, nem música de fundo, nem mesmo o estrondoso "coup de théâtre" que antecede o desfecho:
"(Ouve-se um grito. Beatriz cai de joelhos e assoma à porta um vulto negro. D. Lucrécia retira-se para um lado da cena).
Beatriz: Ele está morto!
D. Francisco (caminhando para ela, embuçado): Morto.
Beatriz (levanta-se precipitadamente): Esta voz! Marcio... Marcio ... és tu? (Descobre o rosto de D. Francisco, que deixa cair o manto) D. Francisco! Justiça de Deus ...!
D. Francisco (rindo-se): Teu pai, minha Beatriz, teu pai que te não podia deixar só neste mundo".
A conclusão, se há alguma, é que o dramaturgo Gonçalves Dias, aos 20 anos, saía-se melhor quando se entregava à sua juvenilidade, celebrando o amor nascente ou imaginando o mal como uma deficiência de ser, uma negatividade, do que ao rivalizar com a esperteza dos verdadeiros artesãos do palco.
Quanto à malfadada festa, retratada como de hábito por um canto de sala, onde se reúnem meia dúzia de pessoas, as únicas requeridas naquele momento pela ação, esse baile fatal para a virtude de Beatriz (recaía sempre sobre a mulher as transgressões sexuais do homem) limita-se a sugerir uma relativa liberdade de costumes e de palavras, nunca chegando à licenciosidade, relegada aos bastidores. Entre os cinco rapazes que o comentam, trocando entre si ameaças e epigramas, todos tentando adivinhar quem é a misteriosa mulher mascarada (é Lucrécia, não Beatriz, como eles pensam), nada menos do que dois tem sobrenomes já empregados por Gonçalves de Magalhães no "Olgiato": Visconti e Montano.
Trate-se ou não de reminiscências de leitura, o fato é que a diferença entre uma e outra peça não poderia ser maior. Enquanto Gonçalves Dias, em "Beatriz Cenci", interessa-se pela Renascença italiana pelo que ela significou de permissividade sexual, Gonçalves de Magalhães, marchando em sentido inverso, fê-la retroceder, no "Olgiato", até a suposta severidade moral da Roma antiga. Um escritor escolheu como um de seus protagonistas o incestuoso Francisco Cenci. O outro negou-se a colocar em cena o devasso Galeazzo Sforza.
Nada demonstra melhor a violenta ruptura efetuada entre o pudor clássico, certamente excessivo em Gonçalves de Magalhães, e o impudor romântico, inspirado de longe pela franqueza com que Shakespeare encara em suas peças a sexualidade.

NOTAS
(1) Gonçalves Dias, A., "Poesias Póstumas", Prólogo, Garnier, s/d (1909), Rio de Janeiro, págs. XXXVI, XV, XVII
(2) Florian, "Gonzalve de Cordoue, précedé d'un Précis Historique sur les Maures d'Espagne", Paris, Chez Dauthereau, 1828
(3) Gonçalves Dias, A., "Obras Póstumas, Teatro", Garnier, s/d, (1909), Rio de Janeiro. No volume, "Beatriz Cenci" antecede a "Patkull". Mas este traz a data de 1843 e aquela a de 1844-1845.
(4) Cf. Valentini, N. e Bacchiani, B., "Beatrice Cenci", Rusconi, Milão, 1981.
(5) Gonçalves Dias, A. "Teatro Completo". Serviço Nacional de Teatro, Rio de Janeiro, 1979, pág. 160. Todas as citações de peças de Gonçalves Dias serão tiradas desta edição.
(6) Antonio Henriques Leal, ao publicar o teatro de Gonçalves Dias, em 1868, no Maranhão, advertira, em nota prévia, quanto a esta possível filiação, assinalando que "Patkull" e "Beatriz Cenci" foram concebidos "sob o entusiasmo da escola romântica, quando imperavam a 'Torre de Nesle', a 'Lucrécia Borgia', e outras composições deste gênero (...)".
(7) Shelley, P.B., "The Complete Poetical Works", Oxford University Press, Londres, 1917, pág. 273.

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