São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A revolução siciliana de Pirandello

MARIA BETÂNIA AMOROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa edição de 1922 de seus contos, Pirandello (1867-1936) adverte o leitor sobre suas intenções. O título "Novelle per Un Anno", dado à coletânea e significando um conto ao dia, por um ano, poderia parecer modesto, mas, na realidade, talvez fosse muito ambicioso.
Citar os dias e as noites em títulos de livros semelhantes ao seu fazia parte de uma antiga tradição que deu resultados famosos como As Mil e Uma Noites. A advertência é pirandelliana: desconfie-se das aparências.
A editora Nova Alexandria acaba de lançar uma coletânea mínima –nove ao todo– daqueles contos pirandellianos, selecionados e traduzidos por Fulvia Moretto. Intitula-se Kaos e Outros Contos Sicilianos. O Kaos do título se refere ao filme dirigido pelos cineastas italianos Paolo e Vittorio Tavianni. Kaos é também o nome do lugar onde nasceu o escritor –e que no filme aparece na forma de um verbete de enciclopédia, projetado sobre imagens da Sicília: rochas, terra, céu, templo grego.
O filme é muito "literário": do verbete sobre a tela explicando o valor real e simbólico do título ao recurso de uma introdução em que camponeses sicilianos descobrem um corvo-macho chocando ovos e passam da linchagem à sua soltura, transformando a ave numa espécie de narrador silencioso que costura os contos.
Mas é muito "cinema": quem assistiu deve ainda se lembrar do som de uma abóbora que rola pelo chão e que, num segundo momento, se repetirá, só que pelo movimento de uma cabeça decapitada, usada como bola num jogo entre bandidos.
Aparentemente, o livro aproveita a existência –teria sido um sucesso?– do filme para reapresentar Pirandello ao leitor brasileiro. Acontece que tal operação limitou demais a amostragem dos contos, apoiando-se numa "unidade temática" –a sicilianidade– que é dos Tavianni e não de Pirandello.
Na verdade, não estamos falando de um autor desconhecido entre nós. Em 1947, por exemplo, José Geraldo Vieira traduziu o romance Os Velhos e os Moços para o Instituto Progresso Editorial; mais recentemente, Alfredo Bosi incluiu no seu livro Céu, Inferno três ensaios sobre Pirandello, que também foi estudado, ainda por Bosi, na sua tese de doutorado.
Por que essa excepcionalidade, já que, de praxe, os autores italianos são pouco traduzidos e sem nenhum planejamento editorial? Uma das explicações poderia estar no uso da língua literária feito pelo autor. Assim como Italo Calvino nos dias de hoje, Pirandello parece aspirar a um tipo de língua que seja traduzível em qualquer outro idioma, uma irradiação do romano com vocação retórica. Mas é também verdade que por esta característica foi um dos escritores italianos mais difundidos internacionalmente, comparável, mais uma vez, à recepção de toda obra de Calvino no mundo.
Uma outra razão estaria na "modernidade" de Pirandello. Como se sabe, a Itália demorou muito para se modernizar. A presença da Igreja, a ausência de uma revolução burguesa nos moldes franceses, retardaram o aparecimento e a circulação das idéias que iriam caracterizar o homem dos novos temos.
No começo do século, os italianos ainda liam romances folhetinescos, repletos de sentimentos de cem anos atrás e expressos numa língua amaneirada. Pirandello, à medida que vai escrevendo e sua obra é divulgada, faz uma verdadeira revolução cultural no país. Em 1908, compõe o ensaio O Humorismo e desencadeia uma enorme polêmica com a figura número um do pensamento nacional, o filósofo Benedetto Croce.
Nesse texto procura estudar o humor: o que o definiria seria o "sentimento do contrário". Mas que não se tome esse humorismo por jogo de palavras ou espirituosidade; antes se diga que o modelo ideal para se pensar no humor é Cervantes e seu personagem Dom Quixote: ao rirmos do Cavaleiro da Triste Figura sabemos que, ao mesmo tempo, há algo profundamente doloroso naquela fantasia.
Seu estudo sobre o humor, porém, era parte de uma discussão mais ampla –e ponto de discórdia entre ele e Croce. Enquanto o filósofo defendia o caráter lírico-intuitivo da obra literária, Pirandello reivindicava seu aspecto reflexivo. Assim, propunha o fim da linha demarcatória, mantida por muitas décadas pela estética idealista italiana, que separava filosofia e literatura, reservando para a primeira toda a possibilidade de conhecimento e, para a segunda, uma potencialidade emotiva e expressiva que a arte deveria resolver.
Dito de outra maneira, Pirandello retirava a literatura da natureza para ligá-la à técnica, à operatividade e à auto-reflexão. O entrelaçamento da intuição com a auto-reflexão servia tanto para analisar o humorismo como era o mecanismo básico da criação literária.
Já bastaria esse quadro para dar uma idéia da revolução pirandelliana, mas não foi por esta via que ele se tornou conhecido na Itália e fora dela. Para muitos, Pirandello encarna o relativismo em toda sua expressão. O pirandellismo passou a ser sinônimo de personae ou máscaras, da fragmentação em que vivem suas personagens –massacradas pelo jogo dos contrários, das formas sociais fixas contra seus desejos mais profundos.
Assim, foi pelo teatro –onde pôde dar maior força àqueles seres dramáticos pela próprias características do gênero– que o escritor se consagrou. Seis Personagens em Busca de um Autor e Henrique 4º, ambas de 1921, foram montadas no mundo inteiro. Nos diálogos das personagens centrais, o autor expressava com maior evidência a face que viria a ser chamada de existencialista do homem.
Em todo caso, é bom lembrar que Pirandello não é só o pirandellismo e que os irmãos Tavianni fizeram uma belíssima leitura de alguns contos que, por sua vez, não é o único sentido para a "sicilianidade" do autor.

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