São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Contos fundem planos narrativos num estilo elíptico e cosmopolita

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"...um mundo turbilhonante, movido por um vento de destruição, em um terreno sólido onde apoiar os pés, com o único recurso de uma moral individual suspensa à beira do abismo."
Esta definição de Eugenio Montale (1896-1981) por Italo Calvino traduz o "clima" de "Anjo Negro", segundo livro do italiano Antonio Tabucchi lançado no Brasil, cujo nome vem justamente de um poema de Montale, "L'Angelo Nero" (1968).
Em um conto de Tabucchi chamado "O Jogo do Reverso" (de seu primeiro livro, de título homônimo, lançado em 1981), dois personagens refazem trajetos "percorridos" em Lisboa por heterônimos do poeta Fernando Pessoa, passando de um a outro em questão de metros.
Se isso não constitui o centro do conto, anuncia, no entanto, como metáfora, o que viria a ser o conjunto da obra de Tabucchi: cosmopolita, elíptica, versátil; romances com traços de novela, novelas com traços de contos, contos com traços de anedota, anedotas com traços de hai-kai...
Seus livros em geral curtos acrescentam uma pitada de sal à teoria que vê o conto moderno como fusão de duas histórias cruzadas (uma secreta e outra visível, como diz o argentino Ricardo Piglia). Também ocorre neles uma superposição, mas esta costuma ser, singularmente, de dois planos narrativos concomitantes, um interno e outro externo aos personagens.
O surgimento em cadeia de pistas que nem sempre orientam (ao contrário, no mais das vezes desnorteiam), solapando a autonomia do personagem principal –eis o choque entre este último e o que lhe é externo. Enquanto isso, o "interno" é o mecanismo incontrolável que o leva ao desejo, não-satisfeito, de dimensionar, hipoteticamente que seja, um sentido para a existência.
Em "Anjo Negro", publicado na Itália em 1991, isso aparece no conto "Vozes Trazidas por Alguma Coisa, Impossível Dizer o Quê", em que frases pinçadas de conversas ao acaso apontam caminhos para um encontro ansiosamente desejado, mas ao mesmo tempo inexequível.
Talvez seja por causa deste conflito que, ao comentar sua mania de exílio (seus cenários –Portugal, Índia, Moçambique, Argentina, Itália...– já lhe valeram comparações aos chamados mestres viajantes Conrad e Melville), Tabucchi tenha dito em uma entrevista que viajar é uma "catarse, um momento de rompimento psicanalítico".
Ao envolver o leitor nesse labirinto existencial que é também o seu, Tabucchi faz lembrar Peter Handke, embora não tenha a fisionomia carrancuda e o andar propositadamente arrastado dos livros do escritor austríaco.
Ao contrário, seu estilo é econômico, leve e colorido, mas nem por isso de conteúdo menos lúgubre e angustiante. Aí reside um paradoxo, que talvez seja a chave do sucesso de Tabucchi: o texto parece extrair seu substrato de um imaginário palimpsesto que unisse Pessoa e Schopenhauer, retrabalhando-o com o poder de síntese e as cores de um roteiro de cinema hollywoodiano.
Assim ocorre no romance "Noturno Indiano" (1984, lançado no Brasil inclusive em "versão" cinematográfica), onde um intelectual procura um amigo português de há muito "sumido" na Índia, mas, na verdade, parece não querer encontrá-lo de fato (talvez porque isso significaria encontrar-se a si mesmo).
Assim também na novela "O Fio do Horizonte" (de 1986, cuja versão cinematográfica, por Fernando Lopes, foi apresentada na última Mostra de Cinema de São Paulo), onde a tentativa de desvendar os mistérios de um assassinato leva o personagem a buscar as razões de seu próprio ser, um "lugar geométrico", como afirma Tabucchi, "que se desloca à medida que nos deslocamos".
Ou ainda em "Boi, boi, boi, boi da cara preta", conto deste "Anjo Negro" em que uma mulher jovem, em mais uma de suas "brincadeiras", inicia uma relação que sabe ser inviável com um velho, num hotel onde foram parar por acidente.
No caso de "Anjo Negro", é no conto "Ano-Novo", o melhor do livro, que Tabucchi justifica mais claramente por que é considerado "um dos nomes mais importantes da literatura italiana atual".
Nele, a reconstituição de uma infância marcada pela "presença" de Nemo –o intrépido, mas melancólico capitão das "Vinte Mil Léguas Submarinas", de Julio Verne– transforma-se numa explosão de ódio extraordinária, temperada pela podridão de um peixe. Tabucchi diz na nota introdutória ao livro: "O que já foi está de volta, bate à nossa porta, petulante, pedinte, insinuante. Às vezes traz um sorriso nos lábios, mas é melhor tomar cuidado, trata-se de um sorriso enganador".
Certamente Tabucchi poderia ter adotado muitos anjos negros dentre os vários que povoam as páginas da chamada literatura universal –de Mika Waltari a Nelson Rodrigues. Mas, numa espécie de contraponto a seu cosmopolitismo, escolheu o "anjo de carvão" de Montale, seu conterrâneo, de quem, aliás, o conto "A Truta que Pula entre as Pedras Lembra-me de sua Vida" bem poderia ser visto como um perfil, tão frio quanto enaltecedor. A volta ao mundo, então, ficou completa.

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