São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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'Sostiene Pereira' mergulha nos subterrâneos do salazarismo

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

A paixão de Tabucchi por Portugal foi responsável pelo mais festejado romance italiano deste ano – Sostiene Pereira (Afirma Pereira), cujos direitos de tradução foram comprados pela Rocco.
O livro conta a história da conscientização política de um velho jornalista de Lisboa, em 1938. Seu pano de fundo é o governo de Salazar, que era simpático aos governos totalitários de Alemanha e Itália e compactuava com as forças anti-republicanas de Franco, na Guerra Civil Espanhola.
Ganhador de três dos principais prêmios literários da Itália, o livro marca, aparentemente, a ruptura de Tabucchi com uma clave estilística anterior, carregando sua ficção de referências históricas decisivas para a resolução do enredo.
Num romance como Noturno Indiano, a viagem do protagonista pela Índia, em busca de um amigo que jamais se personifica, é um tema que dá espessura à busca de uma identidade fragmentária.
Adaptada para o cinema por Alain Corneau, a trama trazia elementos do universo português caros a Tabucchi –a viagem/exílio e a dissolução do eu, levada ao paroxismo por Fernando Pessoa.
À primeira vista, portanto, Sostiene Pereira teria renegado esse virtuosismo literário, entrando em Portugal por terra –e não mais pelas rotas tortuosas do imaginário marítimo.
Seu enredo linear apresenta o cotidiano medíocre do jornalista Pereira, responsável pela página cultural do Lisboa, e as modificações de sua percepção da realidade depois de conhecer o jovem militante político Monteiro Rossi.
Os sentidos ideológicos do romance, contudo, não escondem uma dimensão existencial, possível somente a partir da escansão poética de um cotidiano opressivo.
Assim, o narrador articula o relato como se fosse um depoimento de Pereira, finalizando todas as passagens com o motivo "afirma Pereira" –recurso que cria distanciamento narrativo, dando consistência discursiva à realidade na qual Pereira está imerso.
Mais do que isso, os problemas cardíacos da personagem, sua obsessão pela morte (ao criar obituários para escritores ainda vivos), e seus diálogos com o retrato da mulher morta vão impregnando de cores mórbidas a Lisboa cintilante do início do romance e anunciando a violência iminente.
Assim, por trás desse intreccio político –que está sendo filmado por Roberto Faenza, com Marcello Mastroianni no papel do jornalista–, Tabucchi vai catando índices desse mundo em decomposição e descobrindo na realidade da história as imagens que compõem a opacidade do cotidiano.

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