São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Black is beautiful

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA "REVISTA DA FOLHA"

Não li "The Bell Curve". Não gostei de "The Bell Curve".
Qualquer tentativa de fixar na natureza racial um fator de inferioridade tem como projeto, consciente ou não, naturalizar no interior da cultura uma hierarquia que ela própria articulou e articula ao longo do tempo. É alimento para a intolerância e para a violência. No caso, parece uma tentativa desesperada (a julgar pelo que se diz estar escrito no livro), diante das posições alcançadas pelos negros nos Estados Unidos, de relançar o cientificismo biologista e tecnocrático como caução para programas discriminatórios.
É um erro político e teórico tentar discutir o assunto no interior do esquema "científico" dos autores norte-americanos. Perdoe a obviedade e o anacronismo marxista, mas a posição dos negros na sociedade americana, assim como na brasileira, é resultado de uma história concreta, cuja análise e interpretação são bem mais esclarecedoras do que testes de QI concebidos a partir de um espaço mental e cultural determinado –o da sociedade ocidental tecnológica norte-americana.
E a história revela que o problema racial envolvendo brancos e negros é de uma complexidade incompatível com o maniqueísmo muitas vezes professado por uns e outros. Basta lembrar que negros escravizaram e venderam negros a brancos e que brancos morreram para libertar escravos negros de brancos, e percebemos que, também aqui, um pouco de dialética não faz mal a ninguém.
Muito bem faria, certamente, a Marilene Felinto –articulista mestiça, como ela se designa, que, a despeito de frequentar e desfrutar ambientes da alta burguesia branca de São Paulo, eriça-se diante de comentários de articulistas brancos sobre a questão racial, no caso a respeito de "The Bell Curve", em artigo publicado pelo Mais!, domingo passado.
Não escrevo para defender Barbara Gancia e Marcelo Coelho da culpa de serem brancos. Poderia, no entanto –e o faço–, rebater o tratamento sectário dispensado aos dois e, enfaticamente, o comentário racista dirigido à colunista Sonia Fabiano, da seção "Black", da "Revista da Folha" –chamada, com uma ambiguidade perversa, de "uma negra" pela pena claramente discriminatória de Felinto.
O argumento da articulista para combater a coluna é pífio. Parte da idéia, acertada, de que o racismo no Brasil tem uma configuração distinta do caso americano, para concluir que não caberia aqui uma "imitação barata" da ideologia politicamente correta em evidência nos Estados Unidos.
Ora, antes de mais nada, a cultura negra nunca precisou de nenhuma irmandade de freiras universitárias politicamente corretas para projetar-se na mídia americana e transformar-se em patrimônio universal. A corrosiva ironia de um judeu se ver pintado de preto para cantar jazz no primeiro filme falado só demonstrava, na outra metade do século, a inevitabilidade da emergência do poderio cultural negro nos EUA e no mundo –a despeito dos filtros e armadilhas racistas criados pelo establishment cultural branco.
Hoje há nos Estados Unidos, sem prejuízo da presença na mídia branca, uma milionária indústria cultural negra, cujos produtos, embora muitas vezes segmentados, são largamente consumidos além de qualquer fronteira social e racial.
A publicação de uma coluna "Black" na "Revista da Folha" não é uma imitação barata do politicamente correto, concedida aos pobrezinhos dos negros: ela corresponde à emergência no cenário urbano brasileiro (ao menos de São Paulo e Rio) de um grupo negro de classe média cujos lazer, produção e consumo culturais não se circunscrevem às formas folclóricas ou concedidas pela cultura branca nacional aos negros pobres: samba e cachaça. A coluna dá visibilidade a este grupo e, evidentemente, atende ao propósito da publicação de recrudescer sua presença junto a segmentos e mercados emergentes –o mesmo vale para as colunas "Gay", "Crianças", "Dance" etc.
Mas os comentários de Felinto sobre a revista são apenas um detalhe obscuro diante de outras passagens de seu artigo –bem mais obscurantistas. Caso, por exemplo, de sua estranha gincana contra os judeus na disputa pelo troféu de campeões mundiais da discriminação (parece não se conformar que judeus sejam discriminados, mas tenham pele branca). E de sua rejeição à legitimidade de uma cultura não-intelectualista para representar dignamente sua meia etnia.
Assim como a luta pela igualdade entre homens e mulheres não deve se confundir, como diz Camille Paglia (em "Vamps & Tramps", Vintage, EUA, 1994, US$ 15), com a fetichização pelo feminismo do capitalismo masculino e de seu espaço profissional –o "office", seja nos negócios ou nas academias–, a luta pela igualdade entre negros e brancos não deve escorregar na fetichização desta mesma cultura branca apolínea.
Ou seja, a igualdade entre negros e brancos não deve ser pensada como uma operação que um dia fará coincidir o perfil da comunidade negra com o desenho da cultura branca –o que seria uma luta pela completa assimilação e aculturação, na qual brancos e negros se tornariam, um dia, perfeitamente iguais: todos seriam brancos, apesar da cor da pele. Todos seriam cerebrais, protestantes, admiráveis administradores da máquina socioeconômica do Ocidente.
Ora, a igualdade só não será o coroamento da dominação dos negros pela cultura branca caso seja igualdade pelo reconhecimento da diferença. Diferença que deve ser entendida através da história: a cultura africana teve um desenvolvimento completamente diferente da européia e suas divergências e incompatibilidades com o sistema político, econômico, social e mental do mundo branco são ainda hoje evidentes na África, cujo processo de ocidentalização é uma sangrenta tragédia. A ocidentalização dos negros transportados à força para o Novo Mundo é um ato particular desta tragédia.
Parece-me um erro, um erro religioso e idealista, ainda que belo, encarar a relação entre negros e brancos a partir de uma abstrata igualdade humana original, anterior à história, anterior à cultura, a ser atualizada na sociedade contemporânea. Não existe humano fora da cultura.
Digo isso para fixar o ponto central deste argumento: enfiados à força num estrato inferior do sistema europeu, os descendentes de africanos, embora tenham se "ocidentalizado", mantêm um substrato cultural próprio, ancestral, cuja originalidade e potência não estão no domínio da mentalidade técnica e intelectual do Ocidente.
Isto não significa, evidentemente, como querem os otários da curva, que negros não possam pensar como brancos ou orientais ou árabes ou italianos ou indianos. Não significa, tampouco, que os negros seriam diferentes dos brancos, caso fossem... europeus, caso tivessem criado o romance, feito o Renascimento, a Reforma, a Revolução Francesa, escrito a "Enciclopédia", desenvolvido o capitalismo, transportado negros para as Américas, inventado a filosofia alemã e a bomba atômica.
O fato de que o pai da psicanálise não seja um negro e de que o jazz não tenha sido criado no gueto judeu não diminui nem judeus nem negros. E não vejo por que os valores da arte, da dança e do corpo devam ser colocados numa escala inferior aos da mente voltada para as técnicas de reprodução e administração do capitalismo.
Claro que isto não deve ser encarado como argumento culturalista para, no mesmo sentido de "The Bell Curve", abandonar as reivindicações de acesso dos negros à educação formal e à "grande cultura" branca –num momento em que, nos EUA, ao custo de uma política de cotas, insinua-se um passo à frente.
Mas "black is beautiful" continua sendo o mais belo slogan: negros estão condenados, numa utopia que também envolve, de certa forma, a nós –morenos latinos católicos, que falamos português– a dar uma inestimável contribuição à "nova ordem bonita" de que falou Caetano Veloso num texto publicado no Mais! (25 de setembro). Felinto, no entanto, parece se fascinar mais pela cabeça inteligente do branco do que pelo coração inteligente do negro: vítima da fetichização do intelectualismo ocidental, vive às voltas com sua confusa hierarquização e revela-se aflita com o fato de ser negra e saber pensar. Pois bem, sabe pensar. Mas pensa mal.

Texto Anterior: Rhett Butler foi inspirado em banqueiro de Charleston
Próximo Texto: Saiba o que é o livro
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.