São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A guerra sem fim da razão

SÉRGIO PAULO ROAUNET
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em que sentido podemos dizer que a batalha de Voltaire pelos direitos humanos ainda é "indefinidamente atual", nas palavras de Valéry?
Ela é atual, no Brasil e no mundo, porque está inacabada. É atual porque apesar de progressos importantíssimos, muitas das aberrações que Voltaire combateu renasceram ou se agravaram. É o que podemos verificar em cada um dos direitos pelos quais Voltaire se bateu.
É o caso do direito à razão, o valor mais alto da Ilustração e o mais decisivo para Voltaire, porque é a condição de possibilidade de todos os outros. O pensamento ainda está sujeito a restrições policiais em grande parte da humanidade. Nos países em que elas não existem, a "servidão voluntária" induzida pelo conformismo e pela propaganda impede as pessoas de pensarem por si mesmas. Os fundamentalismos religiosos pululam em toda parte.
Nos Estados Unidos e na Suíça, seitas pregam o fim do mundo e abreviam a chegada dos seus adeptos ao paraíso, induzindo-os ao suicídio coletivo. Aiatolás mandam militantes executar escritores sacrílegos, do mesmo modo que os padres do Antigo Regime, segundo Voltaire, armavam regicidas como Jacques Clément e Ravaillac, para maior glória de Deus. Em Bangladesh, uma escritora é condenada à morte por ter ousado criticar o Corão. Hindus e muçulmanos se trucidam mutuamente em nome do Profeta ou de Brama.
No Brasil, vivemos durante duas décadas sob uma ditadura que proibia livros e prendia escritores, exatamente como na França de Voltaire. Com a redemocratização, os exemplos de intolerância se tornaram raros, mas embora o direito à razão não seja mais cerceado, não se pode dizer que ele esteja entre os mais populares no Brasil. Ao contrário, o irracionalismo se difunde e hoje quase podemos ouvir a reivindicação oposta, o direito ao delírio.
Um mago publica "best sellers", antigos guerrilheiros consultam astrólogos e veteranas trotskistas rodopiam todas as noites no terreiro. São formas benignas de irracionalismo, compreensíveis sobretudo entre os jovens que se filiam a uma concepção alternativa do mundo, e que vêem na leitura de livros esotéricos uma forma tão legítima de protestar contra o "establishment" religioso como a adesão aos verdes é uma forma legítima de protestar contra o "establishment" político. (...)
O direito individual à liberdade é hoje reconhecido nas chamadas democracias industriais, nos antigos países do Leste e em quase todos os países da América Latina. Mas o socialismo burocrático, na China, na Coréia do Norte e em Cuba, bem como os regimes africanos de partido único, são tão absolutistas quanto as tiranias do tempo de Voltaire, com a diferença de que não são despotismos especialmente esclarecidos e de que a rede de doação dos regimes totalitários de hoje é muito mais eficaz que no Antigo Regime.
Por outro lado, os movimentos segmentares de emancipação continuam muito longe dos objetivos visados. A libertação da mulher ainda não avançou o suficiente, o sexismo continua endêmico na Europa e nos Estados Unidos, e são ainda raras mulheres como a companheira de Voltaire, Madame du Châtelet, que escrevia tratados de álgebra e divulgava a física de Newton. A libertação dos negros ainda é mais retórica que real e não há sinais evidentes de que as populações aborígenes estejam recebendo benefícios muito concretos, nem sequer o direito à vida. O colonialismo terminou como forma ostensiva de dominação política, mas não como colonialismo indireto, agora institucionalizado sob a forma de um pretenso direito à intervenção, ou como subordinação econômica e tecnológica.
Terminada uma noite de 21 anos, o Brasil é hoje um país plenamente democrático, com liberdade pessoal e política reconhecida a todos. Mas se isso é verdade para a liberdade individual, é menos verdade no tocante aos objetivos de emancipação setorial. Contam-se nos dedos as mulheres que ocupam altos cargos executivos ou na magistratura superior (...).
A Lei Áurea ainda é uma mentira para a população negra do Brasil, que vive em sua maioria em condições de pobreza igual ou pior à que ostentavam há um século, que continua sem educação, sem teto, sem alimentação, e que fornece 80% ou mais da população penitenciária ou das vítimas da repressão policial. Os progressos obtidos no que diz respeito à emancipação da população indígena podem ser lidos na crônica policial, nas manchetes do "The New York Times", ou nos relatórios da Amnesty International. A descolonização se consumou há 172 anos, mas não é preciso ser nacionalista, o que como bom iluminista estou longe de ser, para saber que o país ainda tem um longo caminho a percorrer para superar a dependência financeira e tecnológica que o impede de participar igualitariamente dos processos decisórios mundiais.
O direito à justiça está hoje em dia protegido nos principais estados democráticos, e dificilmente veríamos abusos semelhantes aos praticados, no tempo de Voltaire, pelos antigos "Parlements". Mesmo assim, a existência da pena de morte nos Estados Unidos é um anacronismo cuja abolição ainda não está à vista. Em outros países, além da pena de morte, há punições degradantes, como a chibata, castigos cruéis, como a lapidação de adúlteras, e a criminalização de práticas, como a blasfêmia ou o adultério, que eram severamente punidas no tempo de Voltaire, mas que hoje deveríamos considerar tão irrelevantes, do ponto de vista penal, como a feitiçaria.
No Brasil, não há pena de morte desde a República. Mas há uma pena de morte não-oficial contra crianças de rua e marginais adultos, falsos ou verdadeiros, executada por criminosos escondidos em órgãos públicos. Durante a ditadura militar tivemos a ressurreição da mais covarde das práticas, a tortura (..). O advento da democracia aboliu essa infâmia, mas ela não conseguiu assegurar de todo o direito à justiça, porque como os juízes são os primeiros a reconhecer, propondo, por isso, uma reforma profunda do aparelho judicial, ela continua, apesar de progressos recentes, em grande parte discriminatória e seletiva, punindo as pessoas de baixa renda e deixando impunes os delitos dos poderosos.
O direito ao bem-estar é negado na prática pela pobreza absoluta em que vegeta a maioria da população do mundo. O chamado conflito Norte-Sul é uma consequência do desnível de renda entre os países desenvolvidos, cuja população tem padrões de consumo sem precedentes na história mundial, e os países subdesenvolvidos, em que a miséria de massa é certamente mais dramática que a encontrada por Voltaire entre os servos da gleba, quando ele se instalou em Ferney.
Inútil dizer que esse direito é transgredido no Brasil, cujos indicadores sociais estão entre os piores do mundo. Com uma mortalidade infantil de 88 por mil, quase duas vezes mais alta que a de Sri-Lanka, e uma taxa de analfabetismo de 18%, uma das mais elevadas da América Latina, o Brasil está em 50º lugar na escala do desenvolvimento humano, segundo o índice elaborado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, apesar de pertencer ao grupo das dez maiores economias do mundo.
O remédio, decerto, não é a modernização autoritária apregoada por Voltaire a partir do modelo russo, mas não é, tampouco, a recusa da modernidade, a regressão utópica para um paraíso bucólico, segundo a visão rousseauísta. Depois de 200 anos, os dois adversários se enfrentam de novo, no Brasil: entre Voltaire, que apostava no progresso econômico e tecnológico, e Rousseau, que realizou uma crítica radical da modernidade, é preciso ter a coragem de tomar partido por Voltaire, buscando a realização de uma modernidade humana, capaz de assegurar a cem milhões de brasileiros a fruição efetiva do seu direito ao bem-estar.
Enfim, o direito à paz, que parecia ter se consolidado com o fim da Guerra Fria e consequentemente com o fim da ameaça nuclear, tornou-se de novo problemático com os focos de violência armada que explodiram depois da dissolução do império soviético e da Iugoslávia. O discurso dominante, hoje, é o discurso da identidade –identidade cultural, étnica e nacional. Há uma etnização dos conflitos –sérvios versus croatas, russos versus alemães, minorias húngaras versus maiorias rumenas, eslavos ortodoxos versus bósnios muçulmanos, e, no fundo, uma retribalização do mundo, dividido entre comunidades autárquicas, demarcadas segundo critérios linguísticos, raciais e religiosos.
É o fim do modesto universalismo que havia sido alcançado durante a Guerra Fria, na verdade, dois cosmopolitismos rivais, que apesar de tudo representavam um progresso, mesmo ambíguo, em direção a um mundo sem fronteiras culturais ou nacionais. O triunfo do nacionalismo e da política da etnicidade poderão selar o fim de qualquer concepção universalista, sem a qual, como sabia Voltaire, o direito à paz se tornaria ilusório.
País sem conflitos externos, sem inimigos hereditários, sem diferenças culturais gritantes, o Brasil tem tudo para assegurar a seus habitantes pelo menos esse direito. Mas é preciso ficar vigilante para que a maré dos novíssimos particularismos não chegue até nós, seja sob uma forma nacionalista, que nos leve a desenvolver fantasias xenófobas, seja pela importação de uma ideologia da etnicidade, que estimule a formação de identidades polonesas no Paraná, de identidades africanas na Bahia e de identidades bororo no Mato Grosso.
Cada vez que alguém começa a falar muito alto de "raízes" e de perda de identidade em consequência da invasão cultural estrangeira, está na hora de procurar a saída de emergência: a doutrina do "sangue e do solo" não está longe. Nada poderia frustrar mais radicalmente o exercício do direito à paz, porque a etnicidade não é outra coisa que a mitologilização neo-romântica da violência, uma ideologia que faz um SS pensar que é Siegfried e que o autoriza a metralhar um gueto em nome de suas raízes germânicas.
Para os que alegam que no Brasil esses extremos são inconcebíveis, respondo que uma política da etnicidade que tenha Macunaíma como herói é muito mais simpática que a que tem Odin como figura totêmica, mas na dúvida é preferível evitar até um caráter nacional baseado na falta de caráter: no frigir dos ovos, Macunaíma pode se esquecer de dizer "ai, que preguiça" e, numa crise de heroísmo, defender pela violência essa identidade negativa, esmigalhando-se com seu tacape miolos inocentes. De novo, Voltaire tem razão: sem doses suficientes de universalismo, que permitam estabelecer diálogos transnacionais e transculturais, relativizando todas as identidades coletivas, o direito à paz, externa e interna, poderia ser ameaçado no Brasil.
Eis a atualidade de Voltaire: a exacerbação, hoje em dia, do fanatismo, da tirania, da injustiça, da miséria e da violência, mostram como precisamos do homem cuja mensagem infatigável foi a defesa do direito à tolerância e à razão, do direito à liberdade individual e coletiva, do direito à justiça e à equidade, do direito ao desenvolvimento e ao bem-estar, do direito à paz e à universalidade.

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