São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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FILÓSOFO ESCREVE SOBRE O BRASIL

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Acabamos de ver, no meio das terras da América, multidões de povos civilizados, industriosos e aguerridos, descobertos e dominados por um pequeno número de espanhóis. Mas os portugueses, conduzidos pelo florentino Américo Vespúcio, tinham descoberto desde a época das viagens de Cristóvão Colombo, no ano de 1500, países não menos vastos, não menos ricos e povoados por nações completamente diferentes. Vespúcio chegou às costas do Brasil situadas perto do Equador.
É o terreno mais fértil da Terra, o céu mais puro e o ar mais saudável. O vento do Oriente, que a rotação da terra em seu eixo faz soprar continuamente entre os dois trópicos, depois de atravessar mil léguas de mar, traz ao Brasil uma doce aragem que tempera o calor de um sol sempre vertical e garante uma primavera eterna. As árvores desse solo desprendem um odor delicioso. As montanhas têm ouro, as rochas, diamantes e todas as frutas nascem nos campos não cultivados. A vida dos homens, limitada por toda parte a 80 anos no máximo, estende-se geralmente entre os brasileiros a 128, às vezes até a 140 anos. Ainda hoje vêem-se portugueses decrépitos embarcarem em Lisboa e rejuvenescerem no Brasil.
Mas que espécie de homens habitavam essa região pela qual a natureza tudo fez? Vespúcio conta em sua carta ao gonfaloneiro de Florença que os brasileiros são de cor bronzeada; talvez se se dissecasse um brasileiro com o mesmo cuidado com que se dissecaram negros, encontrar-se-ia em sua membrana mucosa a razão dessa cor.
Quanto aos costumes, eram inteiramente sem leis, sem nenhum conhecimento da divindade, unicamente ocupados com as necessidades do corpo; a mais interessante dessas necessidades era a junção dos dois sexos. Sua maior habilidade consistia no conhecimento de ervas que estimulavam seus desejos e que as mulheres se encarregavam de colher. A vergonha lhes era desconhecida. Sua nudez, que a amenidade do clima lhes impedia de cobrir, não envergonhava ninguém, e servia para confirmar o uso de não distinguir, no acasalamento, nem irmã, nem mãe, nem filha, das outras mulheres.
A necessidade de matar animais para servirem de alimento os levou a inventar o arco e as flechas. Essa era sua única arte. Serviam-se dela em suas disputas de homem a homem, ou de multidão a multidão. O vencedor comia com sua companheira a carne do inimigo. Vespúcio disse que um brasileiro lhe deu a entender que tinha comido 300 homens em sua vida e quando ficou sabendo que os portugueses não comiam seus inimigos demonstrou grande surpresa. Tal era, no mais belo clima do universo, o estado de pura natureza de homens que chegavam à mais avançada velhice em plena saúde.
Tradução de ELIANA SCOTTI MUZZI
Trexo extraído do livro "Essai sur les Moeurs", cujo fac-símile - veja acima - será exibido por ocasião do Simpósio Voltaire, em Ouro Preto.

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