São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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A menor distância entre dois pontos

JOSÉ SERRA

Recente manifestação da Associação Nacional de Procuradores da República reabriu o debate sobre a legitimidade constitucional de se promover uma nova revisão da Carta Magna mediante procedimentos rápidos e simplificados.
Tal associação considera que a aprovação de qualquer emenda sobre a revisão seria inconstitucional, pois as regras de mudança do texto seriam insuscetíveis de alteração. Funcionariam como cláusulas pétreas, ou seja, deveriam ser eternas.
Não concordo com essa interpretação. O texto constitucional nem sequer sugere tal insuscetibilidade. Além disso, teria cabimento considerar que os resultados de algumas votações do Congresso Constituinte em 1988 não poderiam nunca mais ser alterados, por milênios e milênios, a menos que fosse ferida a ordem democrática?
Uma coisa são os direitos humanos, estes sim cláusulas pétreas. Outra, completamente diferente, muito mais modesta, modestíssima, é a alteração das regras para promover mudanças constitucionais. Lembro ainda que, em emenda que apresentei a respeito, contempla-se a idéia de um referendo para sancionar (ou não) a decisão do Congresso, dando com isso mais legitimidade política à nova revisão.
O tema da mudança constitucional, a respeito do qual o debate nacional irá esquentar nos próximos meses, tem suscitado várias e frequentes indagações.
Por que fracassou a revisão prevista pela atual Constituição para começar após 3 de outubro de 1993? É necessária outra revisão? Por que não mudar a Carta pelo método normal, já previsto em seu próprio texto?
A revisão fracassou pela ação combinada dos "contras" e dos efeitos do ano eleitoral, que provocou nos parlamentares pró-revisão resistências a embarcar no processo de votações, a fim de não perder votos.
Não estou sendo engenheiro de ponte construída, pois antes de 3 de outubro de 1993, expressando posição da bancada do PSDB na Câmara dos Deputados, adverti para o risco de ela fracassar, não sendo consertados os principais defeitos da Constituição.
A fim de salvar a possibilidade de revisão, propusemos adiá-la para o começo de 1995, uma vez que ela estava marcada para começar após 3 de outubro de 1993, ou seja, podia ser feita em qualquer época posterior a essa data.
Com governo e Congresso novos, argumentamos na ocasião, haveria disposição e energia para fazer uma boa revisão. Essa tese, infelizmente, não encontrou o apoio necessário. Houve quem, dominado pela afobação, achasse que a referida proposta significava oposição à revisão, quando na verdade pretendíamos salvá-la.
Pessoas e forças políticas importantes superestimaram o ímpeto social e político pró-revisão. Entre elas, houve quem entendesse também que a revisão só poderia ser feita pelo atual Congresso.
Nunca compreendi a base jurídica dessa tese. Aliás, nenhum grande jurista que ouvimos declarou compartilhá-la.
Àquela altura, era possível um acordo de adiamento da revisão para 1995, inclusive com a aceitação dos "contras". No final do processo (abril-maio de 1994), quando a revisão desvanecia, nem isso foi possível mais.
A "direita" (PPR) não concordou com o adiamento mediante o argumento de que, se Lula ganhasse, uma revisão em 1995 poderia gerar uma Constituição à imagem e semelhança do PT.
A "esquerda" petista, também a favor do encerramento do processo, argumentava que Lula iria ganhar as eleições e que poderia ser manietado pelo novo Congresso, mudando-se a Constituição apenas para prejudicar seu governo. Como dissemos à época, eram fantasias simétricas em torno de uma hipótese improvável.
Havia também os líderes do PDT, para quem a proibição de capitais estrangeiros na mineração, por exemplo, é cláusula pétrea...
Nossa Constituição é talvez a mais prolixa do mundo e hoje, por seu detalhismo, amarra as possibilidades de reformas importantes no Estado, nas finanças públicas, na política. As mudanças necessárias são numerosas e pelo método normal seria muito penoso e lentíssimo conquistá-las.
Lembro que qualquer emenda, para ser aprovada de acordo com esse método, deve atravessar uma comissão especial da Câmara (ou do Senado) e duas votações em cada casa (Câmara e Senado), sempre sujeita à maioria de três quintos e aos "destaques para votação em separado".
Este mecanismo diabólico, o do DVS, implica o seguinte: mesmo depois de aprovada uma emenda, qualquer parlamentar, com apoio mínimo, pode obrigar a votar em separado uma palavra ou uma vírgula, que, para permanecer no texto, deverá também obter os três quintos!
É evidente que se deve tentar mudar a Constituição pelo método já estabelecido, caso a nova revisão não venha a ocorrer. Mas, nesse caso, o país estará mantendo sua condição de sócio-atleta do clube dos países pré-euclidianos, nos quais a menor distância entre dois pontos é uma bela curva espiralada e, se possível, parabólica.

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