São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A restauração do ideal de Palmares

HELIO SANTOS

O primeiro grito de liberdade ecoado neste lado do mundo foi dado por Zumbi, que pagou com a própria vida por ter construído na Serra da Barriga, Alagoas, uma verdadeira república, onde conviviam em liberdade não apenas os negros fugidos do escravismo, mas também brancos foragidos da Justiça e índios. Sua execução ocorreu há 299 anos, e é por isso que se comemora hoje, dia 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra.
As inúmeras dificuldades enfrentadas pelo negro no Brasil acabam por caracterizar um apartheid "quase" racial.
Temos aqui o pior tipo de impedimento racial porque, na maioria das vezes, é velado e hipócrita. Entretanto, quem tem olhos de ver, enxerga. Todavia, para quem sofre desse tipo de hipermetropia tropical sugerimos analisar os indicadores sociais, quando evidenciados com os devidos cortes raciais; o que aliás quase nunca ocorre.
Em vez de divulgarmos aqui o já conhecido inventário de agruras do negro brasileiro, optamos por contextualizar a questão racial vinculando-a àquilo que o candidato eleito, FHC, chama de "Estado reformado", capaz de atender aqueles "que vivem uma cidadania incompleta". Qual a cor da maioria dos subcidadãos a que se refere o presidente eleito?
Antes de responder, gostaríamos de considerar que está em voga esgrimir uma expressão nova, cunhada pelos analistas sociais e políticos: "apartheid social". Tais pessoas cometem um ato falho pois, inconscientemente, reconhecem que os apartados socialmente, no Brasil, em sua larga maioria, não são brancos, daí tomarem emprestado o vocábulo "apartheid" do já revogado sistema político-racial sul-africano.
O apartheid brasileiro, apelidado de "social", se perpetua precisamente pelo fato de ser, na realidade, quase racial mesmo. Somos um país inconcluso, excludente e socialmente perverso, sobretudo em decorrência da abolição tardia –o Brasil foi o último país a se livrar da escravidão.
Por outro lado, a Terra de Santa Cruz foi quem mais mão-de-obra escrava importou: cerca de 4 milhões de africanos. A forma em que se deu a Abolição, que o ideal de Palmares lutou para evitar, desencadeou dois "brasis".
O primeiro Brasil é moderno e sofisticado; foi o país que obteve as maiores taxas de crescimento neste século; possui cerca de 15 milhões de pessoas que gravitam em torno de um PIB colossal.
É uma das dez maiores economias do planeta; é um grande produtor de alimentos; possui ainda um moderno parque industrial e uma vigorosa estrutura comercial, onde se destacam cerca de 400 empresas que ostentam o certificado internacional de qualidade –o ISO-9.000; possui a segunda frota mundial de jatos executivos; dispõe de uma engenharia civil desenvolvida, que constrói aeroportos sofisticados, shoppings centers, hotéis cinco estrelas e edifícios residenciais moderníssimos.
Finalmente, para orgulho nosso, somos considerados o maior celeiro de pilotos da Fórmula 1, que é um esporte tipicamente de primeiríssimo mundo.
Tal país é habitado por uma elite ainda deslumbrada com as compras em Miami, a qual especula com cenários do século 21, mas que atua, socialmente, com a cabeça no século 18. O clima de guerra civil vivido nas ruas de nossas metrópoles evidencia de forma violenta o beco sem saída a que tal política nos levou. É óbvio que a população que habita esse Brasil rico e próspero é branca e amarela na sua quase totalidade.
Quanto ao segundo Brasil, temos o pior dos mundos. É um país anacrônico, onde o historiador social não necessita fazer um mergulho no tempo a fim de identificar os dados para os seus estudos, pois tem a seu dispor, intocado in natura, misérias seculares. É o que se poderia chamar de ecologia da barbárie, pois tem-se a tragédia social preservada zelosamente.
Nesse lado miserável do país, a distribuição de renda só supera Botsuana; doenças já extintas, como o cólera, dengue e a pelagra grassam em extensas áreas; o déficit habitacional é brutal e a mortalidade infantil elimina cerca de mil crianças a cada dia; o desemprego e o subemprego crônicos, aqui, são subprodutos de um niilismo ocasionado pela ausência quase absoluta de capital social e auto-estima.
Nosso passado escravista está conectado até ao cabo com tudo isso: a grande maioria da população preta e parda vive nesse mundo.
Japão e Alemanha têm elites que respeitam seu povo. Nesses países a educação foi quem proporcionou a alavancagem formidável do nível da qualidade de vida. Aqui, quando se entendeu democratizar o ensino público, o que houve foi a acelerada degradação do sistema: a população carente, onde o negro é farta maioria, utiliza uma estrutura de ensino igualmente carente e inepta.
Por isso torna-se patético, entre nós, o debate trazido pelo livro "A Curva do Sino", cujo tema há muito foi superado e que, como se sabe, busca reduzir as verbas destinadas ao ensino público nos Estados Unidos.
Ora, no Brasil não se tem presente a preocupação com o ensino público. FHC crê que raramente ocorre "brecha" na história para promover mudanças, como se tem agora. A principal possibilidade de fazer história que temos a olho nu é a unificação dos dois brasis.
Para tanto é fundamental estabelecer um plano nacional de recuperação social em que haja ampla participação, especialmente dos municípios, onde não só se distribua comida, mas também se tenha a capacitação como meta. Isto é, além do conjuntural não se deve deixar de perseguir também as causas estruturais desse estado de coisas.
Para restaurarmos o ideal de Palmares há que se terminar com a anomia vigente no Brasil pobre. Busca-se aqui o Estado cumprindo uma tarefa que há muito tempo abandonou: viabilizar a cidadania.

Texto Anterior: A menor distância entre dois pontos
Próximo Texto: Prioridades de Maluf; Covas em São Paulo; Crítica à crítica; "Posfácio"; Culto à malandragem;
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.