São Paulo, sábado, 26 de novembro de 1994
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Romance policial deve a Julian Symons a glória de ser 'literatura'

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance policial perdeu um defensor há uma semana, quando o escritor britânico Julian Symons morreu de câncer, aos 82 anos.
Poucos autores fizeram tanto neste século para que esses romances pudessem ter a suprema glória de serem considerados "literatura". Parte do esforço foi a sua própria obra, repleta de livros premiados.
Mas o gênero também deve muito à sua defesa apaixonada dos autores de quem gostava, gente como Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle, Rex Stout, Georges Simenon ou Raymond Chandler.
Órfãos estão também os intelectuais "decentes" do planeta. Esse adjetivo era o principal elogio que costumava ser feito por um amigo de Symons, o escritor George Orwell. Não é uma pecha moralista. Quer dizer basicamente que se trata de alguém honesto e humanista. Symons era decente.
Ironicamente, um dos primeiros contatos entre ele o o autor de "1984", a mais famosa utopia negativa do século, foi quase uma declaração de guerra. Orwell afirmou que um artigo de Symons, escrito durante a Segunda Guerra, tinha uma tendência "vagamente fascista".
O anarquista George Woodcock saiu em defesa de Symons, alegando que na verdade o artigo era até "de tendência marxista".
Orwell reconheceu o erro e se tornou amigo dos dois. Symons fez um comentário que diz muito sobre seu amigo e sobre o jornalismo em geral: "Não é incomum que jornalistas façam afirmações insensatas, mas apenas aqueles de grande integridade admitem, em vez de enterrar os seus erros".
Quando Orwell estava doente, morrendo de tuberculose, Symons era um dos principais destinatários de suas cartas (nem que fosse apenas para pedir canetas esferográficas). Ler romances policiais era uma das distrações do doente, que confessava ter predileções "tradicionais" no gênero. Pode-se dizer o mesmo de Symons, autor de biografias de Poe, um dos inventores da literatura policial, e Conan Doyle, criador do Napoleão dos detetives, Sherlock Holmes.
Symons não é, porém, uma Agatha Christie de calças. Não é o tipo de escritor que mata seus personagens com zarabatanas. Grande admirador de Chandler e, mais ainda, de Dashiell Hammett, ele soube reconhecer o predomínio da ficção linha-dura americana, sem cair na barbárie.
Há um citação hoje clássica de Symons: "O que me atrai mais em nossa área é a violência por trás de faces respeitáveis, o funcionário público planejando como matar judeus mais eficientemente, o juiz falando com paixão sobre a necessidade da pena de morte, o garoto quieto e obediente que mata por diversão. Esses são casos extremos, mas se você quiser mostrar a violência que há por trás das faces suaves que a maioria de nós apresenta ao mundo, que melhor veículo você poderia ter que o romance policial?"
Symons não ganhou o Nobel, que não costuma ser dado aos praticantes do gênero, mas ganhou seus equivalentes concedidos por associações de escritores: o Edgar (homenagem a Poe), da Mystery Writers of America, e o Adaga de Ouro, da Crime Writers Association, de Londres.
Symons escreveu um dos livros-cult dos fãs do gênero, "Bloody Murder" (literalmente, "Sangrento Assassinato"), uma história de romance policial. "Eu sou um viciado, não um acadêmico", disse ele ao introduzir o livro. Graças aos céus.

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