São Paulo, sábado, 26 de novembro de 1994
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Perigoso paliativo

HÉLIO BICUDO

NÃO
O convênio celebrado entre o governo federal e o Estado do Rio de Janeiro é um primor de como chegar-se a mecanismos para a atuação do Estado ao arrepio do texto constitucional.
Aliás, quando se quer violar a Carta Magna, é comum o apelo a condicionantes constitucionais, a balizar a atuação do poder público, enquanto este atua, justamente, sem conhecê-los.
Assim, esse "ajuste" tem o conteúdo de uma intervenção federal em matéria de peculiar interesse de um Estado da Federação, sem que tenham sido acionados os instrumentos institucionais previstos e que, em determinadas situações e segundo circunstâncias constantes da Constituição e que devem ser estritamente observadas, permitem uma atuação mais ampla do governo central, para o equacionamento de problemas que a incapacidade ou incompetência locais não lograram resolver.
O apelo ao artigo 142, da Constituição, onde se diz que as Forças Armadas se destinam à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais e por iniciativa destas, da lei e da ordem, não tem a abrangência que o convênio pretende, porque a lei e a ordem referem-se sempre, na melhor interpretação da Lei Maior, às determinantes anteriormente mencionadas, de defesa da pátria e de suas instituições.
Pretender-se que a questão do crime organizado, que se expande nos grandes centros urbanos –lembre-se que São Paulo ostenta índices de violência que em nada diferem daqueles apresentados pelo Rio de Janeiro–, pode ser resolvida num passe de mágica é ignorar-se que é ele uma decorrência da completa desorganização em que se encontra a polícia no país, cada um de seus segmentos atuando sem um mínimo de coordenação.
Sob esse aspecto, talvez a coordenação somente agora pretendida leve a uma nova política de segurança pública, com uma só polícia, desvinculada do Exército, agindo de maneira unificada, sem os costumeiros conflitos de atribuições, responsáveis, em larga medida, pela própria ineficiência policial e, até mesmo, pela associação bandido/polícia, apontada desde que surgiram os "esquadrões da morte" e as organizações de "justiceiros", em todo o território nacional.
Em vez de buscar-se uma solução em nível nacional, com a desmilitarização das PMs, cortando-se seus vínculos com o Exército, com a criação de uma polícia capaz de responder pela segurança pública, o convênio de início mencionado propõe-se a uma solução tópica, que poderá explodir numa metástase a contaminar todo o país.
Em remate, não são com atuações pontuais que se poderá enfrentar o chamado crime organizado. Toda ação nesse sentido tem de ser preventiva. Quer dizer, vedar-se, nos setores de consumo, o ingresso do tóxico –e, sob esse aspecto, por que não estudar-se a descriminalização controlada de seu uso– e o contrabando de armas.
Estourar-se o ponto ou mesmo a cidade do Rio de Janeiro é permitir-se a maior disseminação do crime, infestando áreas onde, de uma maneira ou de outra, ainda se têm algum controle sobre a violência.
Reveja-se, pois, a polícia, para democratizá-la e torná-la um instrumento realmente hábil para a contenção da violência. O mais é paliativo; e perigoso paliativo.

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