São Paulo, domingo, 27 de novembro de 1994
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Os ressentimentos da crítica

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

A situação da crítica literária, na última década do milênio, reflete bem os presságios dessa era. Talvez o sinal mais característico da atualidade na crítica seja o sentido cada vez mais forte de que ela deveria ser tudo, exceto o que lhe cabe ser: uma expressão da arte literária.
Sofremos hoje, endemicamente, de uma fuga, ou repressão do estético. É como se os críticos mais jovens quisessem fazer de sua disciplina qualquer coisa, desde que não literária: uma das "ciências humanas", ou então uma luta política, um instrumento de mudança social, alguma outra forma de historicismo, ou um estilo de ressentimento.
Ironicamente, esta evasão do literário é invalidada pela verdade infeliz de que hoje, mais do que nunca, vivemos todos em Alexandria; isto é, numa cultura literária. Nem a ciência, nem a religião, nem a filosofia são determinantes da cultura. E uma cultura está condenada a se tornar literária quando fracassam todas as suas ideologias cognitivas. Enquanto cultura alexandrina, nós somos pós-filosóficos, pós-religiosos e até mesmo pós-científicos. Vivemos na literatura, mas fugimos dela.
Toda cultura literária está necessariamente marcada pelo senso crescente de tardividade, de ter chegado tarde nas coisas. A Alexandria helenística já compreendia que era a cultura do depois: depois de Atenas, depois de Platão, que era depois de Homero. A universidade, o gnosticismo, o neoplatonismo, o ecletismo da comunidade judaica helenizada: são todos sinais de uma cultura literária, cujos equivalentes ainda se vêem entre nós. Nosso "pós-modernismo" não é mais que outro modernismo, e como tal está fadado a repetir o primeiro, que é o modernismo de Alexandria.

Qualquer forma de crítica literária incapaz de assimilar Shakespeare acaba deixando de ser literária, para se tornar uma outra coisa: esta ou aquela forma de retórica conceitual. Modelos franceses contemporâneos, que proclamam a morte do autor, ou da personagem, não poderiam ser menos shakespeareanos e sua importação pelas culturas anglófonas vêm ajudando a fazer da nossa crítica um instrumento inadequado para a interpretação de Shakespeare.
Análises neo-historicistas, neomarxistas, ou feministas de Shakespeare revelam-se mais fecundas para a leitura de autores menores, como Dekker, Marston, ou John Fletcher, do que para um estudo de "Hamlet" e "Macbeth". Estudos que privilegiam o contexto ajudam a explicar Fletcher, mas o contexto é simplesmente estilhaçado por Shakespeare. E a função da crítica será sempre a de auxiliar na interpretação de Shakespeare e não de Fletcher, ou então essa crítica deixará de ser literária.
Pode parecer estranho descrever o momento crítico atual como mais um conflito entre o formalismo francês e a interioridade shakespeareana, mas talvez seja este mesmo o destino inelutável dessas nossas "guerras de imitação", como dizia Northrop Frye sobre a crítica. Certamente a fuga do estético, como se vê em tantos estudantes de literatura, é também uma fuga da mímese shakespeareana, de uma arte centrada sobre a representação persuasiva da personagem literária.
A questão da personagem é um emblema do impasse na crítica hoje. No fundo, este impasse refere-se à natureza da leitura e do que há para ler, que é a questão do cânone. Todo crítico lê defensivamente, porque é esta a natureza da leitura. Ler está longe de ser um processo desinteressado. Assim também todo cânone exerce uma forma de poder, mas um poder que têm pouca relação com as questões de gênero, classe, ou raça.
A leitura tem sempre lugar dentro dos limites impostos por considerações canônicas. Literatura, afinal, não é simplesmente linguagem, mas dicção –uma escolha de linguagem, orientada pelos padrões do cânone. A ideologia procura romper a continuidade desses padrões, mas o rompimento é sempre ilusório. Romances "negros" como "Their Eyes Were Watching God", de Zora Neale Hurston, ou "Invisible Man", de Ralph Ellison, teriam entrado no cânone mesmo se nunca tivesse havido um movimento afro-americano. E a canonização prematura das obras de Richard Wright ou James Baldwin não vai salvar essas obras de serem apenas um documento de época.
Mudanças pragmáticas da moda acadêmica têm pouco efeito sobre os elementos duradouros da arte da crítica. Um ensaio como "The Rhetoric of Blindness", de Paul de Man, deve sobreviver à fase final de sua obra, quando seu ceticismo poderoso já começava a ceder espaço à convicção de que descobrira parte da "verdade", na investigação sobre a epistemologia dos tropos.
A crítica literária, enquanto parcela da literatura, não é uma busca da verdade. Foi Aristófanes –e não Aristóteles– quem inventou a crítica. Os grandes críticos, de Longino a Samuel Johnson, Hazlitt, Pater ou Oscar Wilde, sempre souberam que seu esforço não era o mesmo dos filósofos e teólogos, dos historiadores e cientistas.
A função da crítica literária também não é analisar a sociedade. Analisar a literatura já é trabalho bastante. E assim como a crítica um dia se liberou de Platão e da igreja, também a nossa crítica ainda há de se redimir, naquele dia, afinal, em que for capaz de se emancipar de Hegel e Heidegger.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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