São Paulo, segunda-feira, 28 de novembro de 1994
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O consumo do patrimônio público

ANTONIO DIAS LEITE

Estamos com a atenção concentrada nas questões de curto e curtíssimo prazo, mas a reforma do Estado e a privatização de empresas são domínios em que as ações iniciais do novo governo requerem uma visão de médio prazo.
Há convergência de opiniões em torno da redução do governo federal, seja pela transferência de funções aos Estados e municípios, seja pela eliminação de atividades não-essenciais, seja ainda pela privatização de empresas.
O objetivo é fortalecer a capacidade da União executar com eficiência e eficácia as atribuições relevantes, e intransferíveis, que lhe são atribuídas na Constituição.
Ideal seria que a revisão da administração pública se constituísse em atividade regular e continuada. Isso, todavia, não tem acontecido. Fez-se uma reforma de fundo nos anos 30 e, aos poucos, foi ocorrendo a sua deterioração e desatualização. Nova reforma, da qual participei ativamente, aconteceu no fim dos anos 60 e princípio de 70 e a ela se sucedeu outra fase de declínio.
A não-regulamentação da maioria dos dispositivos da Constituição e a pseudo-reforma de 90 conduziram a um nível de destruição, nunca antes visto, da máquina administrativa federal. As leis e regulamentos relativos a funções dos órgãos da administração pública federal passaram, em consequência, a obras de ficção dada a total impossibilidade de serem aplicados.
Desta vez a revisão administrativa terá de ser mais abrangente e profunda do que nas vezes anteriores, inclusive porque o meio externo ao governo modifica com grande intensidade e rapidez.
Registro apenas três pontos que me parecem relevantes para o governo que se inicia:
1) A execução dos programas que o presidente Fernando Henrique vem anunciando depende da reconstrução da máquina administrativa federal, que virá da soma de muitas ações de detalhe;
2) A tarefa da revisão administrativa requererá atenção persistente durante todo o período do governo e deve começar no primeiro dia;
3) É possível identificar e aproveitar pequenos ganhos imediatos que a reforma pode propiciar desde o primeiro ano e que terão grande efeito sobre o sucesso e o prestígio do plano.
Quanto à privatização de empresas sob o controle da União, não há muita dúvida, neste momento, sobre a sua importância e a sua oportunidade. Isso não impede que haja preocupação com os riscos de uma privatização mal pensada ou imprudente, especialmente quando se vem falando, com certa insistência, na venda de patrimônio produtivo para tapar buraco do orçamento corrente da União.
Estive presente nas discussões, com propostas concretas, desde 1985, mas reitero aqui tão-somente o que continua a me parecer fundamental no processo de privatização.
O pressuposto da operação de privatização é que ela resulte em benefício para o desenvolvimento da economia nacional. O processo de seleção dos compradores deve, pois, atender ao requisito de viabilizar economicamente a nova estrutura empresarial e a sua recuperação e expansão, quando for o caso.
Este aspecto é de especial importância quando se trata, como agora, de privatização de empresas prestadoras de serviços públicos de ampla penetração em toda a vida econômica regional, cuja renovação pode contribuir para o sucesso do próprio plano econômico.
É preciso não esquecer que se trata da venda de patrimônio representado pela participação da União no capital de empresas produtivas, com recursos originalmente arrecadados da sociedade ao longo de 50 anos, por vezes com grande sacrifício.
Essa venda é ética e economicamente defensável, se os recursos dela provenientes forem aplicados na redução de dívidas da União. A perda de ativos é assim compensada, em conjunto, pela supressão de passivos. E a operação é de tão maior mérito quanto mais eficaz for a liquidação dessas dívidas na eliminação de obstáculos ao processo de saneamento e modernização da economia.
A outra aplicação, em princípio também válida, de investimento em outros empreendimentos produtivos não cabe, no nosso caso, face à decisão política de retirar o governo de tais aplicações.
O que é inadmissível é falar-se, como se tem feito, na venda e, na verdade no consumo, de patrimônio produtivo da União como instrumento de equilíbrio dos orçamentos correntes da União, de um ou dois anos. Sempre insisti no acoplamento nítido, automático e incontornável entre arrecadação e aplicação dos recursos provenientes da privatização.
O governo optou até aqui por dissociar essas operações. Não fica claro, por isso, para o público, o destino ou o proveito dos recursos arrecadados. Por ironia, o criticado uso dos créditos vencidos contra a União (moedas podres) foi o que assegurou aplicações diretas na redução da dívida.
A privatização há de ser feita, pelo novo governo, com disposição firme e decisões nítidas, sem precipitação ou hesitação no cumprimento das etapas. Os recursos obtidos terão de ser canalizados de forma transparente para a redução da dívida e de passivos vencidos, cujo saneamento e reformulação sejam relevantes para o processo de retomada do desenvolvimento.

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