São Paulo, terça-feira, 29 de novembro de 1994
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País está entre 'patos mancos' e tucanos

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os patos mancos estão por toda a parte. Todos nós só fazemos olhar os patos mancos. Sabem o que são? "Lame Ducks" (patos mancos) são os governantes que ainda estão nos palácios, mas já em fim de linha, tropeçando numa terra de ninguém entre um mandato e outro.
Itamar já partiu para o amor, Fleury busca aposentadoria, Helio Garcia nem aparece mais e a população inteira vive um doce interregno com algum suspense (fará Itamar alguma trapalhada, casará com June? Algum atentado?). As notícias são mornas, os jornalistas bocejam nas redações.
Quanto aos eleitos, estamos todos esperançosos como nunca, com algum suspense.
O inquietante é que o clima tem algo do que a dramaturgia americana chama de "contrapreparação dramática". Isto é quando, por exemplo, num filme tudo começa a ir indescritivelmente bem demais no último terço da história, céu azul, mar de almirante, casal feliz no "sunny side of the street". Pode contar que vem tragédia. Em "Love Story", no auge do amor vem um câncer; em "Ghost", um assassinato na lua-de-mel e assim por diante.
Estamos num período "muito bom para ser verdade" e o perigo é que os eleitos entrem nessa e se sintam como protagonistas desta esperança.
Assim como estávamos acostumados a um catastrofismo permanente, ao erro congênito que culminou com a tragédia grega dos "atridas" de Alagoas, com mãe semimorta no hospital e câncer na cabeça, entramos agora num período que vai contra a vocação de séculos da tendência ibérica ao fracasso. Desde a colônia que os donatários pediam ao rei que pelo amor de Deus os devolvessem a Portugal.
A idéia de país possível é novíssima e diáfana na história do Brasil. Nossa única lembrança "boa" é o delírio de JK. Há um pessimismo inercial no brasileiro que será um grande desafio reverter. Sempre xingamos a pátria nos botequins e isso nos enobrecia entre copinhos de pinga. De repente, os populismos foram arrasados e o PSDB, que promete ser o casamento da razão e da justiça com os ventos do tempo, toma o poder. E um novo perigo se desenha, não há sossego.
Estaremos delegando tudo a esta promessa de razão? O perigo é criarmos um "messianismo light" em torno de um homem e um partido e ficarmos assistindo ao show, até ele quebrar a cara na primeira gafe do poder. É a cara do país. Mitos morrem por um erro. Betinho era santo, até que foi humano e ninguém perdoou. Ricupero saiu da santidade para os quintos do inferno.
Os eleitos federais e os estaduais têm na mão a maior oportunidade da história da República, com este imenso arco de apoios. Mas a primeira coisa que os eleitos têm de fazer é tirar a população do papel passivo de espectadores.
O povo não é espectador. Tem de ser chamado a participar por uma grande iniciativa "mediática", demandando à população as bases do apoio ao que deverá ser feito, para criar a sustentação para as reformas de "esquerda" que o governo deverá enfrentar.
Os eleitos não podem acreditar na lua-de-mel da razão com o egoísmo, a ilusão de que a direita se reformou e que tudo poderá ser resolvido só com o diálogo e o bom senso.
O novo governo tem de estimular a formação de uma sociedade civil com uma consciência política mais moderna.
As áreas da sociedade que participam mais de política, em geral, nadam em caldos de rancor ou em antigas idéias genéricas. Os eleitos têm de provar que trazem o "novo", dando à população um ideário pontual, uma clareza do que seria uma nova esquerda "prática" e administrativa, que diferencie este governo de um braço "social" do neoliberalismo.
Os eleitos não podem se deslumbrar com uma tecnologia de poder auto-suficiente. FHC tem muito prestígio, mas precisa de bases populares. Precisamos de um manifesto tucano-popular, porque a luta vai ser grande.
As novas palavras mágicas como "cidadania", "mercado", "auto-regulação", "nova ordem" não podem nos fazer esquecer das velhas palavras como miséria, luta de classes, interesses agrários, burguesia financeira etc... Os eleitos precisam de um fundo diálogo com a sociedade. Senão, como cumprir o pacto do diabo entre as novas realidades e as antigas misérias? Afinal de contas, direita não existe mais?
Refinou-se, mesclou-se nos ternos cinzentos e gravatas coloridas, dissolveu-se num milagre racional, volatilizou-se em sorrisos e tapinhas? Onde está a direita?
Está em lugares inimagináveis há 20 anos. Sim. Está nos heróicos torsos de antigos operários hoje petroleiros corporativistas. Sim. Mas também está nas oligarquias nordestinas, nos bancos, nas multinacionais com a funda obsessão capitalista sem alma, apesar dos elegantes meneios modernos. Não serão sempre elegantes assim. A direita está entranhada também nos aparelhos do Estado, na paralisia burocrática, no sistema de rituais que protegem privilégios.
Temos de estar preparados para a decepção com os liberais. Ainda bem que na Europa e EUA a máscara da "nova ordem" já caiu e ficou claro a ausência de um projeto social do capitalismo. Só as esquerdas (velhas e novas) pensam na injustiça.
O novo governo terá de criar "by-passes", pontes de safenas que oxigenem o poder e permitam governar. E estas safenas da reforma terão de modernizar a consciência da população e fortalecer o governo em "feed back". A politização da sociedade tem de ser parte do programa do governo.
Também precisamos de uma oposição forte. Lula e os outros seres inteligentes do PT têm de, além de reformar o partido que é refém de velhos "quadros", agir como carrapatos dos eleitos, cobrando a justiça, que o governo pode esquecer nos meneios para atender à complexidade dos problemas.
Sem este apoio da sociedade e sem esta oposição, o governo ficará alienado numa auto-suficiência e assistiremos de camarote à solidão dos técnicos, esperando o fracasso para voltarmos ao saudoso pessimismo dependente.

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