São Paulo, terça-feira, 29 de novembro de 1994
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Bernardet desanca a figura do autor

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Jean-Claude Bernardet, fiel a seu projeto de preservar o direito ao ecletismo e contradição do autor, dá uma nova reviravolta em sua obra. Depois de deixar de lado a análise de filmes, seu trabalho de décadas, para se dedicar à ficção ("Aquele Rapaz" e "Os Histéricos"), ele retoma agora o cinema, mas por novo viés: a crítica teórica.
"O Autor no Cinema" é um manifesto irônico destinado a desancar a "política dos autores", desenvolvida nos anos 50 e 60 pelos críticos dos "Cahiers du Cinéma", que também se tornariam cineastas –Eric Rohmer, Claude Chabrol, François Truffaut e Jean-Luc Godard, entre outros.
Em entrevista à Folha, Bernardet explica por que rejeita a supervalorização da figura do autor no cinema e propõe uma nova metodologia crítica.
Folha - Como você vê a organicidade de "O Autor no Cinema"? Como se relaciona o capítulo central, sobre a crítica brasileira, com o primeiro e o último capítulos, que tratam da crítica francesa da "nouvelle vague"?
Jean-Claude Bernardet - A "política dos autores" teve repercussão em tantos países, que não há por que pensar que não teria no Brasil. De fato, teve, seja pelas leituras dos cineastas ou pelas próprias asas das idéias. Por outro lado, há um dado meu, que também se encontra na ficção (em "Aquele Rapaz" e "Os Histéricos"), que é minha história pessoal de ser francês, porém nem tanto, ser brasileiro, porém nem tanto.
Achei interessante fazer esse trajeto França-Brasil, porque há um fundamento histórico das idéias cinematográficas e um fundamento biográfico meu. Os teóricos tendem a mascarar os elementos pessoais em seus textos, mas eles existem.
Folha - Esse reforço enfático do sujeito, do indivíduo-autor, não contraria aquilo que você tanto critica em seu livro, ou seja, o projeto autoral no cinema? Se eu fosse traçar, por exemplo, suas pegadas biográficas ao longo de sua obra e achasse essa transição da França para o Brasil em cada uma delas, você consideraria meu trabalho contrário à sua intenção?
Bernardet - Tendo-se uma concepção unitária de sujeito, acaba-se considerando como marca do sujeito o que é harmonioso entre si, o que é recorrente, revela afinidades etc., descartando-se as rupturas, os desvios. Há portanto dois pontos: na prática, a pessoa deixa marcas nas obras que produz; por outro lado, essa pessoa não é necessariamente a mesma dos 15 aos 85 anos.
No primeiro capítulo de meu livro, mostro como os teóricos da "nouvelle vague" tentaram eliminar as contradições, de tal forma que se preservasse apenas o que se encaixa no conceito unitário de sujeito, de matriz. Portanto, se você fizesse essa pesquisa na minha obra, certamente encontraria muito do aspecto França-Brasil, mas também há elementos, igualmente constitutivos do sujeito, que não entrariam nessa unidade.
Folha - Você coloca em pé de igualdade o "autorismo" nos críticos e nos cineastas. Fellini é constantemente citado, embora esteja se manifestando como realizador e não crítico. Já Chabrol e Rohmer estão falando dos filmes dos outros. Você não vê diferença?
Bernardet - Há diferença, mas tais cineastas são citados não como realizadores de filmes, mas de textos. No caso de Eisenstein ou Fellini, estou tomando seus textos e entrevistas, não entro no mérito dos filmes, nem questiono se o que eles dizem a respeito de seus próprios filmes deve ser aceito. Pensei muito e cheguei à conclusão de que tal procedimento não feria a metodologia.
As entrevistas dos "Cahiers", com Rossellini, Welles etc., reunidas no volume "A Política dos Autores", acabaram se transformando numa espécie de bíblia. Os críticos usaram a produção oral desses cineastas como embasamento de suas posições teóricas.
Folha - Você realça várias vezes a posição do produtor de cinema. Estaria tentando dividir a carga autoral, em primeiro lugar, com o produtor, antes mesmo do roteirista?
Bernardet - Meu livro, principalmente na primeira parte, tem um caráter irônico, é quase um panfleto, sintonizado com propostas que estamos desenvolvendo na ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP), frontalmente contrárias ao cinema de autor. A ideologia do cinema de autor foi produtiva numa determinada época. Não havia como contestar as idéias de Truffaut ou de Glauber quando foram formuladas.
Isto, aliás, é uma velha tese de Paulo Emilio (Salles Gomes): as ideologias são boas quando são criativas. O tempo passou, e as ideologias têm dificuldade em acompanhar a história. A idéia de autor permaneceu como um traço ideológico que se vai requentando e se mantém pela inércia, sem que tenha havido um questionamento suficientemente severo, quer do lado da evolução do cinema, quer das filosofias referentes ao sujeito.
Valorizo, por isso, a figura do produtor. Mas não se trata do produtor americano dos anos 30. Falo do produtor que tem os pés no chão e ao mesmo tempo está apaixonado pelo projeto do diretor. A idéia do produtor não significa para mim uma homogeinização do produto, é trabalhar dentro da diversidade, da surpresa, mas dialogando com o público.
Folha - Até que ponto a "política dos autores" realmente determinou a postura da crítica no Brasil? Os críticos que você cita, como Almeida Salles, Paulo Emilio e mesmo Glauber, parecem ter uma postura independente com relação a ela.
Bernardet - A questão que coloco não é a de saber se eles assimilaram a "política dos autores", mas quais pontos de contato posso encontrar e como eles discutiram isso. O que mais me interessa nessa história é como o autor, que não tem nada de revolucionário na concepção francesa, vira revolucionário na concepção de Glauber. Como Paulo Emilio, que era um dos maiores leitores da literatura cinematográfica francesa, podia se colocar contra ela.
A produção teórica francesa tem tendências hegemônicas. Os franceses se consideram (e não deixam de ser, em parte) produtores de teorias que vão se multiplicar pelos pequenos grupos de críticos, cineastas e teóricos do cinema de outros países. Dessa forma, é viável perguntar como se recebeu a teoria francesa. Isso não significa que essa teoria seja automaticamente aceita. No processo de discussão, ela é profundamente transformada, o que aconteceu com a noção de autor de Glauber.
Folha - Por que a relevância da questão do autor no campo do cinema, ao contrário de outros, como a literatura, no qual sempre se falou de autor e se continua falando sem qualquer constrangimento?
Bernardet - Sim, pode-se continuar escrevendo sobre Guimarães Rosa, Racine e tudo bem. No entanto, certas teorias da linguagem e da intertextualidade checam um pouco isso. As teorias do "ça parle" ("isso fala") e certos momentos mais radicais de Barthes também questionam isso. Com relação ao autor na área cinematográfica em "O Autor no Cinema", a ancoragem está clara. Acho que o Brasil não pode mais deixar sobreviver na base da inércia um momento ideológico que foi rico há 30 anos.
É preciso repensar isso. Uma das maneiras seria escrever sobre o produtor, outra seria discutir as fontes teóricas da noção de autor. Talvez meu livro tenha cara de acadêmico, talvez mesmo o seja, mas acredito que está inserido numa polêmica atual.
Folha - Você pretende abandonar a análise de filmes?
Bernardet - Hoje, não reescreveria "O Vôo dos Anjos" (sobre os filmes de Sganzerla e Bressane) sob nenhum de seus aspectos. Cheguei num certo nível de capacidade de analisar filmes. Agora, continuar para quê? Posso falar de mais filmes, mas vou estar sempre repetindo as mesmas coisas. Muitos estudiosos de cinema estão de acordo com isso: a análise de filmes deixou de ser frutífera.

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