São Paulo, sexta-feira, 2 de dezembro de 1994
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Estado nacional deve ser repensado

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Estado dever ser repensado, diz Martins
Coordenador do seminário que reúne FHC e intelectuais considera marxismo incapaz de analisar o "mundo de hoje"
O conceito de Estado nacional morreu de velho. Diante da economia globalizada, as antigas fronteiras ficaram tênues e identidades nacionais têm de ser repensadas.
É essa a posição do sociólogo Luciano Martins, 60, coordenador do seminário que reúne entre hoje e amanhã, no Itamaraty, mais de 60 intelectuais em torno do presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Motivado pelo tema do encontro –"O Brasil e as Tendências Econômicas e Políticas Contemporâneas–, Luciano diz também que o marxismo deixou de ser um interlocutor relevante: "A análise genial que Marx fez do capitalismo não tem nada a ver com o que se passa no mundo de hoje".
Mais arredio à imprensa do que de costume desde que seu amigo FHC se elegeu, ele concordou em falar à Folha, desde que o assunto ficasse restrito ao seminário. A conversa durou meia hora, no bar do hotel em que o sociólogo está hospedado.
Entre as muitas farpas que distribuiu, a mais sintomática foi àqueles que vêem no projeto de FHC uma tradução fiel das idéias defendidas pelo chamado "consenso de Washington". "Isso é absolutamente ridículo", disse.

Folha - O que se pode esperar de um seminário como esse a um mês da posse do futuro presidente da República?
Luciano Martins - O seminário foi uma idéia do Fernando Henrique. Ele me pediu que organizasse isso há mais ou menos um mês e meio. Eu organizei, discuti com ele, submeti os nomes dos participantes a ele.
Na verdade, este é um hábito que nós praticamos há 40 anos. Não tem nada a ver com o futuro governo. É uma troca de idéias.
Folha - Entre os convidados há pelo menos um marxista declarado, o historiador Eric Hobsbawm. Por quê? O marxismo continua sendo um interlocutor importante para o debate contemporâneo?
Martins - Acho que não. Você vai ver que o próprio Hobsbawm está extremamente confuso. Pelo que eu sei, ele está perplexo. Ele tem um interesse histórico, não mais do que isso.
Folha - O convite a ele está, então, vinculado à sua importância intelectual?
Martins - Não à importância, mas à competência dele. Me parece interessante na última sessão de debates, sobre a crise dos paradigmas do pensamento político, tê-lo como debatedor.
Folha - A crítica ao capitalismo está superada?
Martins - De jeito nenhum. O que está superado é a crítica marxista ao capitalismo. Marx fez a análise mais genial do capitalismo no tempo dele. Não tem nada a ver com o que acontece hoje.
Outra coisa é a ossificação da doutrina marxista, que está liquidada há muito tempo. Isso não quer dizer que a história acabou, como quer o japonês (Francis Fukuyama, cientista político norte-americano de origem japonesa, autor de "O Fim da História"). Isso é bobagem. Pelo contrário, quem sabe aflorará uma crítica muito mais pertinente do capitalismo.
Folha - Quais implicações tirar da crise dos antigos paradigmas políticos?
Martins - A partir do fim da Guerra Fria e da implosão do regime soviético, começou um processo de revisão das formas de pensar a política.
Além disso, de dez ou 15 anos prara cá, começaram a surgir novas formas de ação política. As formas tradicionais da democracia representativa começaram a ser contestadas. A sociedade civil está se organizando em vários grupos, defendendo seus interesses. E isso não passa necessariamente pelos moldes tradicionais da democracia representativa. Isso vale para os EUA, para o Brasil, para qualquer lugar do mundo. São as chamadas ONGs (Organizações Não-Governamentais).
Resumindo, há uma mudança na forma de conceder a ação política e de como pensar a sociedade e a política. Estamos num processo de transição muito profundo. Nações explodem, formas sociais explodem, formas de pensar a política explodem.
Folha –Esse seminário tem o objetivo de reafirmar a condição de intelectual do futuro presidente?
Martins –A condição de intelectual nos acompanhará, para o bem ou para o mal, até o túmulo. É a condição da gente. O que vamos fazer?
Folha –Um dos temas do seminário são as implicações sociais e econômicas postas pela chamada terceira revolução tecnológica. O desemprego estrutural passa a ser uma realidade?
Martins –A terceira revolução industrial vai mudar a forma de produzir, vai mudar a estratificação social. Agora, toda vez que houve uma revolução industrial, houve também desemprego. O importante não é isso. Há formas compensatórias, para isso tem o Welfare State (Estado de Bem-Estar Social).
A sociedade até então tem reabsorvido, de uma forma ou de outra, a questão do desemprego, reciclando, abrindo novas frentes no setor de serviços.
Folha –E quais são as consequências da globalização econômica? Como ficam os Estados nacionais?
Martins –Esse processo de globalização e regionalização põe em questão a forma tradicional de encarar o Estado-nação. Isso está mudando.
Quando você faz o Mercosul, os países envolvidos de alguma forma abrem mão de prerrogativas importantes, já que se está discutindo política macroeconômica.
Folha –Os adversários eleitorais do Fernando Henrique viram sua proposta eleitoral como uma adesão ao chamado "consenso de Washington". Isso é certo ou o "consenso de Washington" está superado, como dizem alguns tucanos?
Martins –Isso é absolutamente ridículo. Não tem nenhuma importância. Se alguém se der ao trabalho de ler a mensagem do Clinton ao Congresso vai ver que é uma brutal crítica à política de Reagan, neoliberal, se você quiser.
Isso quer dizer quer não existe neoliberalismo? Não. Existe sim, da mesma forma que existem monarquistas, comunistas. Não tem sentido tentar transformar essa coisa de "consenso de Washington" numa nova forma de colonialismo. É pura bobagem.
Folha –Mas o programa do Fernando Henrique...
Martins –Um dos méritos do Fernando Henrique foi ter politizado o debate sobre a inflação. A inflação é uma coisa nefasta popularmente. Hoje há um consenso sobre isso. E o "consenso de Washington" o que significa? Abertura da economia? Mas, meu Deus do céu, olha a China. O resto é coisa de uma certa esquerda tradicional, meio comunista, que não tem o que dizer.
Folha –Saindo um pouco do seminário, como fica daqui para frente a questão da ciência e tecnologia no Brasil dentro do contexto que você descreveu?
Martins –Não respondo.
Folha –Nada? Mas isso tem ligação com a palestra do Manuel Castells.
Martins –É uma ligação que você está fazendo. Você na verdade quer saber o que a gente está pensando sobre ciência e tecnologia no Brasil. Sobre isso não falo.

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