São Paulo, sexta-feira, 2 de dezembro de 1994
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Progresso culinário acompanha história de Florença

HAMILTON MELLÃO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O bestiário popular inventa certezas que, de tão repetidas, acabam virando verdades insofismáveis. Sempre que se fala em macarrão escutamos o vulgo exclamar de sua poltrona: "Foi trazido da China por Marco Polo."
Ora, em seu "O Livro das Maravilhas", o viajante genovês comenta realmente uma massa feita com farinha e água do mesmo modo como é usada na China até hoje. Na verdade o macarrão é, em primeira instância, etrusco e, portanto, florentino, pois o fato de juntar a ancestral farinha de trigo com prosaicos ovos formando uma massa para cozê-la em água é tão primário, para quem fazia o seu pão todo dia, como usar as mãos para se alimentar.
O nascimento da Florença está convencionalmente fixado em 59 a.C., pois naquele ano alguns ex-legionários de Júlio Cesar deixaram as armas e fundaram uma colônia com o nome de Florentia (lugar florido). Mas aqueles romanos não foram os primeiros. Antes deles, os etruscos já haviam utilizado o lugar como passagem de comércio entre o norte e o sul, fundando ali suas vilas.
Foram estes –os etruscos– que começaram a base da culinária florentina. Eram um povo refinado e de gourmets, que comia ao som de música, usava pratos e copos, e sua culinária era leve e genuína. Os etruscos deixaram um grande legado gastronômico, como atestam os afrescos de suas tumbas.
No século 1 a.C. Roma já havia conquistado a Etruria, se apossando de lugar que hoje é a Florença. A partir daí sua cozinha começa a se confundir com a romana, que, se no princípio era parca e frugal, com o aumento da riqueza torna-se excessiva seja em quantidade ou em qualidade.
Assim, numa competição pela opulência, os cozinheiros são incitados a fazer pratos mais exóticos e inusitados, com cérebros de pavão, língua de pássaros ou vulva de porca virgem, com o único intuito de se sobressair perante os seus, sem procurar o gosto nem a boa mesa.
Enquanto o luxo tomava conta das mesas romanas, os visigodos, unos, vândalos e ostrogodos destruíam seu império, que só voltou a ter uma certa paz com Carlos Magno, rei dos franceses e fundador do Sacro Império Romano.
As pestes, a carestia e a falta de uma autoridade central fizeram com que as pessoas abandonassem as cidades e procurassem a proteção do senhor feudal. Nos feudos, a fome grassava e era comum tomar sopas de grama, assados de rato e mesmo o canibalismo.
No início do século 11, a vida começa a melhorar, com as Cruzadas, que abriram o mercado do Oriente, e volta da população para as cidades.
Florença era uma passagem natural de quem ia do norte para Roma e começa a experimentar um rápido crescimento. Porém, apesar de todo este trânsito, continua com uma culinária baseada em produtos locais. Esta situação prevalece até chegarmos em 1.300, quando ela se transforma num país e torna-se centro da cultura mundial, modelo das artes, literatura e dos costumes.
À mesa, começa-se a usar o garfo, objeto que só foi adotado no mundo civilizado 200 anos depois. Construíam-se depósitos subterrâneos para guardar o gelo do inverno, onde se conservavam os peixes, servindo ainda como base para fabricação do sorvete, feito com mel e creme de leite.
Com a ascensão do clã dos Medici, a culinária começa a se organizar. Já com a descoberta das Américas os florentinos foram os primeiros a conhecer e a adotar os exóticos alimentos que chegavam, dando a estes produtos o sotaque da sua região.
A maior prova de que os Medici apreciavam a boa mesa é que todos eles sofriam de gota. Como, por exemplo, Piero, dito o gotoso, que mesmo no auge das suas crises não conseguia abandonar as duas dúzias de ostras diárias.
Até o mais xenófobo francês não pode negar que a cozinha florentina foi a base da sua, pois quando Catarina de Medici casa com Enrico 2º, rei da França, ela leva com seus cozinheiros a massa folhada, o molho bechamel, a arte da fritura, o azeite de oliva, além de centenas de outras técnicas e pratos que revolucionaram a culinária francesa.
Passaram-se muitos anos e o florentino continuou fiel às suas raízes. Reconhecido os excessos da "Nuova Cucina", eles seguem resgatando antigas receitas, que fazem da cozinha florentina uma das maiores da Itália.
São Paulo abriga até 3 de dezembro, no afrancesado La Cuisine du Soleil do Maksoud Plaza, um festival da comida florentina, com a presença e as receitas dos chefs Geraldo Cavalieri e Tommasi Vezzani, ambos do restaurante Sabattini, um dos melhores de Florença.
Na cidade não existe, infelizmente, nenhum restaurante da região, mas Giancarlo Marcheggiani, do Ponte Vecchio, trabalhou no Ponte Vecchio original e Massimo Barletti, do Treblano, trabalhou no Sabattini. Ambos carregam a experiência adquirida nestes dois restaurantes toscanos.

LA CUISINE DU SOLEIL: Maksoud Plaza, al. Campinas, 150, tel. 253-4411. O cardápio custa R$ 40 por pessoa
PONTE VECCHIO: r. Bandeira Paulista, 197, tel. 280-6891, Itaim
TREBBIANO: al. Campinas, 266, tel. 283-0500, Jardins

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