São Paulo, sábado, 3 de dezembro de 1994
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Mudança pelo bem e pelo mal

LUÍS NASSIF

Fernando Collor de Mello mudou o Brasil, graças às suas virtudes e aos seus defeitos. Quando assumiu, no início de 1990, o país estava preso a um nó institucional aparentemente insolúvel. Parecia um edifício de cartas, que todos evitavam tocar, com receio de que desmoronasse.
Não se podia flexibilizar a política cambial, porque provocaria fuga de divisas. Não se podia abrir a economia, porque provocaria fuga de indústrias. Não se podia acabar com as aplicações ao portador, porque haveria fuga de capitais.
Não se podia mexer na intermediação política do Estado, porque acabaria a sustentação política do governo. Não se podia mexer na estrutura sindical, porque o país arderia em greves. Não se podia mexer com a indústria automobilística, porque indústrias seriam transferidas para outros países.
Collor teve a visão genial de entender que não se implodiria esse edifício getulista pedindo licença, nem derrubando apenas alguns dos alicerces. Com a imprudência e o voluntarismo que caracterizam os homens de ação, investiu contra todos os fantasmas ao mesmo tempo.
Collor intuiu, com uma clareza admirável, o papel que caberia a cada agente político e econômico no novo país que estava sendo moldado. Essa visão genial foi sua grande virtude e sua maior fraqueza.
Era como se ele jogasse pôquer contra dezenas de adversários, conhecendo antecipadamente as cartas de cada um. Podia bancar as apostas porque a inevitabilidade da modernização acabaria conduzindo cada um para o destino que Collor apostava.
De um lado, essa antevisão acabou contaminando-o com um sentimento de onipotência fatal. Acreditava que a estratégia era tão poderosa que podia ser implementada com assessores de terceira categoria (alguns poucos, de primeira).
De outro lado, através de PC Farias traçou uma estratégia paralela, de montagem de um poder econômico que lhe garantisse a sobrevida política quando terminasse o mandato. A questão não era ficar rico, era perpetuar seu poder –e não se está minimizando sua atuação, à medida que buscar poder denota maior ambição do que ficar rico.
Mais uma vez, um lance estratégico genial. A desregulamentação e a abertura permitiriam o aparecimento de uma nova leva de empreendedores. Bastaria ao esquema Collor aliar-se àqueles mais promissores, o governo conceder uma mãozinha, para casar-se poder político com poder econômico. O manual encontrado no PC de PC Farias demonstra visão extraordinária dos novos tempos.
A tática comprometeu a estratégia. O extremo provincianismo, a arrogância, a falta de limites de seus aliados, uma tragédia familiar espantosa liquidaram com seus sonhos e proporcionaram sua outra grande contribuição ao país: a campanha do impeachment, que abriu espaço para uma democracia direta onde, pela primeira vez desde a abertura, a cidadania pôde acreditar em sua força para se libertar dos grilhões de um modelo político anacrônico e anti-social.

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