São Paulo, sábado, 3 de dezembro de 1994
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O luto pelo salvador

RENATO JANINE RIBEIRO

Collor é, ou foi, uma figura ambígua. É inegável que mudou nossa agenda política, em especial no que toca ao papel do Estado, a suas relações com o setor privado, à abertura da economia. Seu êxito se mede pelo fato de que hoje os referenciais da discussão brasileira não são os mesmos de 1989. Mas ele agiu de forma atabalhoada, perturbando setores inteiros do Estado –incluindo a própria área de ciência e tecnologia, vital para uma integração competitiva de nossa economia, e que só foi pacificada, mesmo, no governo Itamar.
O principal, porém, diz respeito mais à política, com suas paixões, e menos aos interesses econômicos. Nos anos Collor se encenou um drama no qual o paladino da luta anticorrupção se desmascarava, e a forte propensão de nosso povo –típica de uma cultura política frágil– a reduzir as questões sociais e políticas a um simples moralismo acabava revelando seus inevitáveis impasses e limitações.
Collor já na posse encarnou a figura do salvador, que rasga a ordem legal em nome de uma causa superior, a do "salus populi", no caso, a salvação do país. Apostou na força bruta, quase animal, e na vontade treinada, quase demiúrgica. Desde os gregos, sabe-se que o espaço dos homens é o da política, intermediário entre os animais e os deuses. Collor parecia estar mal entre os humanos, neste mundo de diálogo no qual ocorre o erro, mas também se cria o novo.
Seu experimento de tutela sobre o país, que levou aliás aos trejeitos mussolinianos e à invasão da Folha, acabou, porém, sendo apenas uma repetição paródica das salvações militares de nosso passado. A sociedade foi capaz de punir, dentro da lei, o aprendiz de redentor. Mais importante do que a sentença por corrupção foi esse repúdio à tutela. É recusando o papel de crianças que os súditos se tornam cidadãos, e o poder se faz produto de nossa ação coletiva. A democracia presume –ou forma– adultos.
Mas chegou até o fim a gigantesca e necessária catarse, a destituição de quem tentou infantilizar cidadãos, ser pai de seres adultos? Embora os tempos do real sejam prosaicos (como prova a vitória, nacional e estadual, do PSDB, o partido que faz da prosa uma ciência) e esteja condenada a épica irracional do collorismo, o luto pelo salvador não foi completado.
Continua havendo lugar para o gesto autoritário, para a paixão de não ser livre, como se viu nas eleições ou na constituição carioca das classes pobres como classes perigosas.
E, sobretudo, continua faltando uma educação política para a democracia, algo que ensine que é justamente nos fracassos que esse regime melhor mostra seu êxito, sua face humana, falível mas inventiva. Ainda não podemos dizer que entre nós a democracia viva de força própria: ela sobrevive pela fraqueza das alternativas.

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