São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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FIM DE SÉCULO

ROBERTO SCHWARZ

Corremos o risco de ver reprisado o desastre da Abolição
O queparecia acumulação se perdeu ou não serviu aos fins previstos. À verificação recíproca e crítica entre as esculturas tradicional e moderna não se deu, ou melhor, deu-se nos termos lamentáveis das conveniências do mercado. Etc. etc.
Entre parêntesis, não custa observar que as idéias de Derrida chegaram ao Brasil antes que se instalasse esse clima. Recordo um ensaio do amigo Silviano Santiago, aqui presente, que data de 1971, cujo horizonte ainda era outro, anterior à desmobilização, e aliás bastante pior. Naquela oportunidade a desconstrução servia como objeção ao paroxismo autoritário da ditadura, assim como à rigidez da esquerda envolvida na luta armada, além de incluir um ligeiro toque de reivindicação latino-americanista, quando questiona o primado do centro sobre a periferia, o que talvez fosse um modo paradoxal de dar continuidade ao nacionalismo do período anterior (2). Silviano me corrigirá se for o caso.
Voltando contudo ao argumento, a desintegração do projeto desenvolvimentista deixou por terra um conjunto impressionante de ilusões. Procurei indicar a afinidade que existe entre esta desautorização maciça de uma experiência histórica e o teor de ambiguidade que a nova crítica injetou nas categorias históricas tradicionais. Tanto que a desconstrução filosófica, apesar do esoterismo, chega a se parecer a uma descrição vulgarmente empírica da atualidade e de seus equívocos e desenganos contemporâneos. Contudo basta pensar um pouco mais concretamente naquela desintegração para lhe notar a materialidade prática, um peso de catástrofe real que não se compagina com o estatuto apenas discursivo da crítica filosófica e de seu objeto.
Assim, por exemplo, o desenvolvimentismo arrancou populações a seu enquadramento antigo, de certo modo as liberando, para as reenquadrar num processo às vezes titânico de industrialização nacional, ao qual a certa altura, ante as novas condições de concorrência econômica, não pode dar prosseguimento. Já sem terem para onde voltar, estas populações se encontram numa condição histórica nova, de sujeitos monetários sem dinheiro, ou de ex-proletários virtuais, disponíveis para a criminalidade e toda sorte de fanatismos. Passando ao esforço nacional de acumulação, o que se vê são sacrifícios fantásticos para instalar usinas atômicas que nunca irão funcionar, estradas que não vão a parte alguma, ferrovias imensas entregues à ferrugem, edificações-fantasma que entretanto não se desmancham com as ilusões ou negociatas que as tiraram do nada. Que fazer com elas? Inclusive o crescimento da universidade pode ser visto em termos análogos. Digamos então que os resultados da ilusão são fatos sociais efetivos.
Um estudioso alemão da modernização, Robert Kurz, de quem tomamos emprestado as fórmulas, os argumentos e exemplos do parágrafo anterior, chama "pós-catastróficas" as sociedades que se mobilizaram a fundo para o desenvolvimento industrial e não o conseguiram viabilizar (3). Para o autor, o "colapso da modernização", consistindo exatamente na sequência de arregimentação profunda e fracasso, nestas sociedades já é um fato, ao passo que a normalidade passou a não ser mais que um verniz. Noutras palavras, a falência do desenvolvimentismo, o qual havia revolvido a sociedade de alto a baixo, abre um período específico, essencialmente moderno, cuja dinâmica é a desagregação. Se for assim, o que está na ordem do dia não é o abandono das ilusões nacionais, mas sim a sua crítica especificada, o acompanhamento de sua desintegração, a qual é um dos conteúdos reais e momentosos de nosso tempo.
Considerada deste ângulo, aliás, a desintegração nacional não é uma questão nacional, e sim um aspecto da inviabilização global das industrializações retardatárias, ou seja, da impossibilidade crescente, para os países atrasados, de se incorporarem enquanto nações e de modo socialmente coeso ao progresso do capitalismo. As fragmentações locais são o avesso do avanço contemporâneo e de seu curso cada vez mais destrutivo e unificado. (Assim, o discurso desconstrucionista sobre os preconceitos e enganos embutidos na idéia abstrata de nação tem pouca relevância e passa à margem do processo efetivo. A presente desintegração nacional é uma realidade material da história contemporânea, e a distância que separa as suas condicionantes técnico-econômicas dos trocadilhos filosóficos em moda, talvez já ex-moda, é patética).
Este prisma tem interesse também para o fundo do debate intelectual brasileiro. A partir da Independência, este último deve a sua inspiração à tarefa inconclusa da formação nacional, à qual se vincula o imperativo de participar da modernidade –um imperativo com aceitação geral (4). Com o ciclo desenvolvimentista a questão adquire as feições de hoje: trata-se de industrializar o país, trazendo a população rural a formas incipientes de trabalho assalariado e cidadania, de consumo e cultura atuais, a fim de equipará-lo ao progresso do mundo.
A reflexão a este respeito costuma tomar caráter diferencial: em quais pontos e por que razões –devidas ao passado colonial– o país discrepa da norma civilizada? De certa maneira, apesar dos obstáculos, o sentimento de modernidade correspondente a tal reflexão não é muito aflito nem problemático, pois a modernidade no caso se apresenta como estável, à espera e ao alcance da mão, além de encarnada positivamente nas nações que nos servem de modelo. Se já no século passado soubemos trocar a escravidão pelo trabalho mais ou menos livre, nada parece impedir agora que a elite se auto-reforme e passe do clientelismo à conduta racional, do mandonismo à cidadania, da corrupção à virtude republicana, do protecionismo à livre concorrência etc., quando então faremos parte digna do concerto das nações evoluídas.
Entretanto, se historicizarmos a modernização, como é necessário, e a tomarmos não como coleção de normas abstratas, à disposição geral, mas como processo mundial efetivo, com seu desenho real, onde possivelmente não haja lugar para nós, e muito menos para todos, desestabilizamos aquelas esperanças. Contrariamente ao que diz a ideologia –como bem observa Kurz– o mercado não é para todos. De passagem fica clara quanto era estreita e provinciana a nossa idéia de modernização, para a qual o problema não estava na marcha do mundo, mas apenas em nossa posição relativa dentro dela. Se é verdade que a modernização tomou um rumo que não está ao alcance de nossos recursos, além de não criar o emprego e a cidadania prometidos, como ficamos? O que pensar dela? O mito da convergência providencial entre progresso e sociedade brasileira em formação (ou latino-americana) já não convence. E se a parte da modernização que nos tocou for esta mesma dissociação agora em curso, fora e dentro de nós? E quem somos nós neste processo?
As sociedades que não alcançaram a integração moderna são afetadas de modo diferenciado pela nova ordem global. No Brasil corremos o risco de ver reprisado o desastre da Abolição, quando os senhores, ao se modernizarem, se livraram dos escravos e os abandonaram à sua sorte. É sabido que o novo padrão competitivo, íngreme em face das realidades da vida popular, se compõe à maravilha com o nosso descaso secular pelos pobres. Em seu "despreparo", estes estão deixando de interessar até como força de trabalho quase gratuita. Passou o tempo em que incorporá-los parecia um imperativo econômico.
Diante das novas tendências estruturais, mais segmentadoras que integradoras, com as suas desqualificações sociais duras e sobretudo o desemprego tecnológico, não será fácil as elites decidirem e entenderem, até para uso particular, em que consista ser parte de um país ou governá-lo. Só por coração cristão ou deformação esquerdista antiga os cidadãos da faixa atualizada, aliás policlassista, sentirão afinidade com os que sobraram. O divórcio entre economia e nação é uma tendência cujo alcance ainda mal começamos a imaginar. A pergunta não é retórica: o que é, o que significa uma cultura nacional que já não articule nenhum projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como um estilo de vida simpático a consumir entre outros? Essa estetização consumista das aspirações à comunidade nacional não deixa de ser um índice da nova situação também da... estética. Enfim, o capitalismo continua empilhando vitórias.
NOTAS
(*) Salvo alguns acréscimos, comunicação apresentada ao colóquio sobre "As culturas do fim do século na América Latina", na Universidade de Yale, em abril de 1994. Tratando-se de um panorama, retomei formulações de trabalhos anteriores.
(1) P.E. Salles Gomes, "Uma Situação Colonial", Arte em Revista, nº 1, S. Paulo, Kairós, 1981. Ver ainda, do mesmo autor, "A Criação de uma Consciência Cinematográfica Nacional", Arte em Revista, nº 2, S. Paulo, Kairós, 1983. A publicação mencionada reúne uma boa documentação sobre o período.
(2) Silviano Santiago, "O entre-lugar do discurso latino-americano", Uma Literatura nos Trópicos, São Paulo, Perspectiva, 1978.
(3) Robert Kurz, O Colapso da Modernização, São Paulo, Paz e Terra, 1992.
(4) Antonio Candido, "Uma literatura empenhada", Formação da Literatura Brasileira, São Paulo, Martins, 1969, vol. 1.

Tradução do espanhol de MARGARIDA RATÓN

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