São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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O segundo turno Florestan Fernandes

Entre as medidas inovadoras da Constituição de 1988 merece especial referência a introdução dos dois turnos na votação do presidente da República e de governadores de Estado. A norma, que também se aplica a prefeitos de municípios com mais de 200 mil eleitores, prescreve a obtenção da "maioria absoluta de votos, não computados os brancos e os nulos".
Na ocasião, observando experiências de outros países, defendi a fórmula. Parecia-me uma democratização do processo eleitoral que reforçaria os mandatos políticos. Verificou-se, contudo, que os que podem contar com recursos econômicos e de propaganda, especialmente pela mídia, foram notoriamente beneficiados.
Tivemos dois testes decisivos. Ambos mostraram o teor plutocrático e o grau de despolitização dos dois turnos. Dado o nosso atraso cultural e educacional, o eleitor tende a oscilar do primeiro para o segundo turno, caindo nas garras dos chefões convencionais.
Nossa tradição é de conciliação pelo alto e ausência de cidadania, onde impera a subalternização dos eleitores pobres e dos sem classe. Os resultados do primeiro turno servem como uma bússola para as classes dominantes. Elas se conglomeram em articulações "sujas", antidemocráticas e anti-republicanas.
Descobrindo quais são e onde se aninham as resistências a seus interesses econômicos, sociais e políticos, as elites "legitimam" suas propensões conciliadoras. Massacram sem piedade os candidatos com forte apoio popular, elevando ao poder representantes políticos "leais" à ordem. As raras exceções confirmam esse paradigma.
Em alguns casos, prevalecem o desespero e a falta de integridade dos financiadores dos candidatos passíveis de derrota ou quase derrotados. Irrompem manifestações de subpopulismo e o abuso de promessas inviáveis. A exploração eleitoral da violência policial também entra em cena, acoplada a práticas de coação e de anulação de votos. Os heróis desses procedimentos abrigam-se na impunidade.
O que tudo isso nos ensina? Seria suficiente trocar as eleições majoritárias pelo voto distrital ou pelo voto misto? É claro que não! Há males que só encontram solução através de mudanças profundas na estrutura da sociedade civil e na alteração da mentalidade política dos candidatos e dos eleitores.
Enquanto os eleitores forem considerados meios para atingir a vitória a qualquer preço, todo o sistema eleitoral estará condenado. O voto majoritário, apesar de suas inconsistências, oferece um mecanismo de seleção mais adequado à situação brasileira.
Uma transformação que permita assimilar o segundo turno consistiria em reeducar as classes dominantes e suas elites, e, nas proporções necessárias, as classes trabalhadoras e os sem classe, vítimas diretas do dilema. Sem a coexistência, na mesma pessoa, do eleitor e do cidadão, a cópia de padrões estranhos só aumentará, a médio prazo, a pobreza de nossa tradição política incivil.
Florestan Fernandes escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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