São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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Vocações frustradas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Tema que sempre me fascinou: a vocação. Não há partida de futebol a que assista sem que dedique alguma atenção aos bandeirinhas. Nunca houve na história da humanidade um menino que tenha se prometido: "Quando crescer serei bandeirinha!" No entanto, todas as partidas têm os dois auxiliares de Sua Senhoria, o Árbitro, correndo pelas laterais e brandindo o instrumento que dá nome à função e ao indivíduo.
Já fui goleiro, ponta-esquerda e juiz de peladas de praia. Bandeirinha jamais! Em compensação, muito me enrolei em matéria de destino. Pensei em ser entregador de marmitas. Só não realizei a vocação porque, concomitantemente, queria ser maquinista de trem da Central do Brasil. A dúvida foi tal e tanta que acabei optando pela terceira via –e quis ser padre. Precisei de dez anos no seminário para desconfiar de que não tinha vocação para nada.
Todos os dias eu ficava no portão esperando pelo garoto que trazia o almoço do vizinho. Era um deslumbramento. Pedia para ver o que as marmitas tinham dentro, cheirava-as profundamente, não me atrevia a implorar uma prova. Olhava para o entregador como a um duende, um ser fantástico, mensageiro de maravilhas. Nutria especial encanto pela marmita do arroz, compactado e branco, com um aroma bom de tempero caseiro.
Para minha mãe, comer de marmita era humilhante. Até que meu avô morreu e, naquela manhã, a nossa rotina ficou mais ou menos complicada. A vizinha, além das condolências, veio trazer sua solidariedade. Com o olho feroz de vizinha, desconfiou da confusão e me levou para almoçar. Minha mãe esboçou resistência mas eu aceitei prontamente.
Pouco lembro da morte do avô –embora gostasse dele. Mas nunca esqueci o gosto daquelas marmitas: feijão na vasilha maior, duas de arroz, uma de batatas coradas, outra de bifes enrolados com linguiça dentro. Desconfio que, daquele dia em diante, fui perdendo a vocação de entregador de marmitas.
Parti para outros destinos, não necessariamente mais altos. Se tivesse perseverado, seria hoje entregador de pizzas –herdeiro motorizado do ofício. Ser jornalista foi menos útil, embora mais divertido.

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