São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994
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A Justiça no Brasil ao final do milênio

JOSÉ CARLOS DIAS

Nunca estivemos tão próximos da história. Eu explico. A história se marca pelas guerras, por um muro que cai, pelos grandes episódios, sejam bons ou maus os momentos. Nossa história é curta, pequena, acontecimentos marcantes somam-se nos dedos. Ao contrário, nossos fatos principais são subproduto, consequência do que o mundo foi parindo, foi criando. Assim na política, assim na cultura. Que me perdoem as eventuais heresias da minha provável ignorância, mas assim é que vejo, que sinto, nosso trajeto ou nossa trajetória. Tome-se como exemplo a abolição da escravatura. Ostentando a Lei Áurea como vitória, continuaram os negros na miséria.
Lendo o discurso que Fernando Henrique pronunciou, em tom coloquial, ao final da reunião acadêmica promovida no Itamaraty, senti o "frisson" do inédito na nossa história política. O grande desafio posto pelo talento e cultura do cientista social que se concretiza no político e se transfigura no estadista. Vai ter que provar a sua grande tese. Expõe-se à glória ou ao fracasso, já que a mediocridade se descarta.
Vivemos o prelúdio de uma era que sepulta o que era, e que será o que for o líder, na sua capacidade de arregimentar as grandes lideranças sociais, de transformar o modelo estereotipado do político, até então rotulado de forma preconceituosa, porém geralmente exata, como de um manipulador de favores e comprador de votos.
O milagre não virá, mesmo porque não queremos milagreiros, pais-de-santo ou exus, queremos, isto sim, uma reconceituação do significado da democracia, de seus elementos sustentadores, do que é e deve passar a ser a representação popular, na proporcionalidade que a legitima; na compreensão de que a previdência social não pode confundir-se com divina providência a aleitar e a proporcionar o ócio precoce aos que têm pernas e cabeça para serem cidadãos que pensam e podem trabalhar.
Grandes reformas são clamadas e têm que ser postas como realidade no nosso ordenamento jurídico, passando pela ordem econômica, pelo próprio processo eleitoral. A fome e a ignorância são incompatíveis com a decência.
O chamado acordo de Brasília, por si só, foi um evento que marca a era Fernando Henrique: um grupo de respeitáveis cientistas sociais de várias partes do mundo se unem a seus colegas brasileiros para discutirem com o sociólogo que se tornou presidente do país, seu companheiro de tantos eventos, de tantas jornadas, de exílios, reflexões e divergências.
O que seria a história neste momento? O modelo que se pode desenhar no plano ético-político-social, a partir do discurso que exprime decisão política, é um modelo de transformação que tem que remexer em muitos valores, que tem que espantar sequelas e cacoetes de muitos que se acostumaram com a injustiça, dela se aproveitam, com muitos que se nutrem do caldo de cultura da bandalheira.
É preciso que entremos numa era que não seja marcada pela "caça às bruxas", mas, ao contrário, pela consciente compenetração de que os valores mudam e o respeito ao Estado, com a honestidade e a ética, é poderoso antivírus da corrupção. Precisamos nos compenetrar de que o país está mudando, ou estamos mudando de país.
Precisamos de um líder, não de um caudilho, ou de um ditador bem-intencionado (como se houvesse). E Fernando Henrique encarna este líder que conhece o fenômeno social pelo que leu, ouviu, escreveu, sofreu, por sua história pessoal e pela oportunidade que lhe foi reservada de mostrar ao mundo, no grande laboratório brasileiro, que a tese vale.
Ganhou o progresso e não perdeu o PT, perderam isto sim, os que acreditavam estarem votando na conservação da injustiça social que sempre aumentou seus privilégios, perderam os que blasonavam que a "gauche chic" não faz mal para ninguém ou que o governo FHC seria somente "pour épater les bourgeois". Não, o grande desafio está posto a quem diz, com seu espírito agudo, mordaz, que se considera ainda mais inteligente do que vaidoso. E agora, como disse ao final de seu magnífico discurso, ao encerrar o "encontro de Brasília": "Agora não é mais opção. É uma determinação".
Sem dúvida, não sei se me fiz entender, mas parece que estamos chegando perto da história, entrando nela, construindo um capítulo que espero, torço ardentemente, tenha como título um título com sabor de título de uma tese acadêmica gestada e nascida nas mãos de um sociólogo-presidente: "A Justiça no Brasil ao final do milênio".

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