São Paulo, terça-feira, 6 de dezembro de 1994
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Collor - um julgamento ético

MARIA LÚCIA KARAM; ALBERTO ZACHARIAS TORON

"Que espécie de coisas se lembra melhor?", arriscou-se Alice a perguntar. "Oh, das coisas que aconteceram na semana que vem", respondeu a rainha num tom descuidado. "Por exemplo, agora", continuou, pondo um grande adesivo no dedo enquanto falava, "estou a lembrar-me do mensageiro do rei. Está agora na prisão a ser castigado; e o julgamento não começa senão na próxima quarta-feira; e é evidente que o crime só virá no fim". (Lewis Carroll, "Alice do Outro Lado do Espelho")

Certamente, o desejo da ética e o repúdio à corrupção são parte indispensável de qualquer compromisso com a construção de uma sociedade melhor e mais justa. Mas uma sociedade só será melhor e mais justa se for construída com o aprofundamento da liberdade e da democracia.
Quando o desejo da ética e o repúdio à corrupção se transformam numa irracional busca de repressão a qualquer custo, num incontrolável furor persecutório, a se sobrepor a princípios minimamente garantidores de direitos fundamentais do cidadão, é o próprio compromisso com a construção desta sociedade melhor e mais justa que se vê ameaçado.
Quando o desejo da ética e o repúdio à corrupção dão lugar a propostas de punição desenfreada, ingênua ou oportunistamente apresentadas como soluções aptas a acabar com a criminalidade; quando se pretende "limpar mãos" e varrer todos os males, com a pura e simples prisão de um ou outro acusado; quando se consagram como ideais de realização da justiça a severidade a condenação sistemática, a aplicação arbitrária de penas rigorosas; quando se desprezam o direito de defesa e a presunção de inocência; quando se demonizam suas condutas; quando são estas as idéias propagandeadas, desejadas e aceitas como verdadeiras, não é só aquele compromisso com a construção de uma sociedade melhor e mais justa que se vê ameaçado, mas é o próprio compromisso com a honestidade que se vê traído.
A manipulação do destrutivo sentimento de vingança costuma trazer uma nefasta satisfação, quando alguém reconhecido como criminoso é preso ou condenado. Mas esta satisfação também tem seu lado cínico: quando alguém é apontado como criminoso, os demais podem seguir aliviados, desempenhando seus papéis de "cidadãos de bem".
Muitos dos entusiastas de uma implacável caça a sonegadores não vacilam em embolsar diferenças de preços de vendas sem nota fiscal ou de consultas médicas com recibos, como muitos dos que clamam pela prisão de políticos identificados como corruptos não hesitam a cada nova eleição em apoiar seus pares, para evitar qualquer tentativa de transformações sociais mais profundas.
Essas reflexões vêm a propósito de recentes e noticiários sobre eventual absolvição do ex-presidente Collor: fala-se de crise institucional (vejam-se declarações atribuídas ao presidente da OAB na edição de 22/11/94 da Folha); chega-se até a afirmar que "a opinião pública não assimilaria a absolvição, mesmo que juridicamente fundada" (editorial de "O Estado de S. Paulo", publicado na mesma data).
Condenações com fundamentos jurídicos, pedidas sob ameaças de supostas crises institucionais ou de não assimilação de uma absolvição pela opinião pública (talvez não se trate propriamente de uma opinião pública, mas da opinião publicada), certamente, nada têm a ver com um racional combate e repúdio à corrupção, apenas consagrando aquele inútil e perigoso furor punitivo, apenas alimentando a cínica e nefasta satisfação com o castigo de uns para o alívio de outros.
Condenações criminais a qualquer custo não se compatibilizam com os compromissos dos que exigimos e saudamos o impeachment. Ao contrário, introduzem uma aparência de eficácia destinada a aplacar uma demanda social, a qual exonera o Estado do dever de desenvolver programas mais amplos de política social. Quando fomos às ruas, de caras pintadas, tínhamos o desejo da ética –uma ética compromissada com a construção de uma sociedade melhor e mais justa.
Desprezar, por um momento que seja ou sob o pretexto que for, o julgamento imparcial e o direito do réu –quem quer que seja ele– de não ser condenado sem que esteja absolutamente comprovada a conduta criminosa a ele atribuída significa desprezar aquele nosso próprio desejo. A ética de uma sociedade melhor e mais justa é a ética da liberdade e da democracia, garantidora dos direitos fundamentais de qualquer cidadão, mesmo que se trate de nosso pior inimigo ou adversário político.
Seria, e é, paradoxal que após os anos de regime militar, quando se denunciaram tantos "julgamentos políticos", eufemismo que esconde as condenações arbitrárias, no período democrático fossemos brindados com a repetição de práticas que se acreditava banidas da vida pública nacional.
Nunca é demais, por isso, relembrar o recente julgamento de Ivan Demjanjuk –acusado de ser "Ivan o Terrível", algoz de muitos judeus chacinados em Treblinka– quando, apesar das enormes pressões da opinião pública, a Corte Suprema de Israel absolveu o acusado, dando um exemplo de respeito ao direito, humanidade e civilidade.

MARIA LÚCIA KARAM, 45, juíza de Direito no Rio de Janeiro, é membro da Associação Juízes para a Democracia, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e autora de "De Crimes, Penas e Fantasmas" (Ed. Luan, 1991).

ALBERTO ZACHARIAS TORON, 35, advogado criminalista em São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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