São Paulo, quinta-feira, 8 de dezembro de 1994
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Liberais são novos xiitas

OTAVIO FRIAS FILHO

Visitando a Inglaterra no começo do período Thatcher, em 83 ou 84, de repente me dei conta de que as pessoas com mais de 30 anos continuavam de esquerda, enquanto as que tinham menos de 30 eram todas de direita.
Desde então, a morte do neoliberalismo já foi anunciada várias vezes. A eleição de Clinton, por exemplo, deu margem a um desses anúncios monotonamente esperançosos.
E aí está o governo Clinton, destroçado por uma derrota nas urnas da qual, dizem, não vai se recuperar, acossado por um futuro presidente da Câmara que mais parece Jirinovski do que líder do Partido Republicano.
Como um eterno candidato a quem surrupiaram a eleição, Vargas Llosa passou por São Paulo repetindo a sua pregação ultra: nem saúde, nem educação, o Estado deveria limitar-se a garantir segurança. O resto é mercado.
Já tivemos a nossa Thatcher, com dez anos de atraso, que foi Collor. Coube a ele o serviço pesado (ou sujo, conforme o ponto de vista) de quebrar os pilares do protecionismo nacional e corporativo, que herdamos de Vargas.
Agora o caminho está desimpedido e ninguém ousa dizer nada contra o livre mercado. Roberto Campos está canonizado. Mesmo Covas, sempre medroso nessas questões, manda dizer que em seu governo tudo será privatizável.
Enquanto os arautos social-democratas de FHC continuam tentando tapar o sol com a peneira, testemunhos de primeira mão asseguram que na equipe econômica o neoliberalismo mais frenético é uma crença, uma fé, um apostolado.
Já era conhecido o fenômeno bioideológico, por assim dizer, pelo qual trotskistas tendem a tornar-se liberais com o passar do tempo. A novidade é ver liberais agindo como trotskistas de assembléia.
E ainda mais imbuídos de certeza religiosa porque não se vê alternativa. Da Sibéria à Patagônia, a fórmula de todo e qualquer governo no planeta é desregulamentar. Opção, se existe, é o neofascismo.
O que parece ter ocorrido é que o desaparecimento do mundo soviético e a emergência da informática produziram uma verdadeira explosão capitalista. Fronteiras e proibições foram varridas da noite para o dia pela energia liberada.
A grande dúvida é saber como sobreviverão as pessoas menos aptas nesse ambiente de competição feroz. Elas formam um crescente exército de desempregados no Primeiro Mundo; no Terceiro, empregadas ou não, elas são franca maioria.
Bem ou mal, as antigas barreiras e garantias eram uma forma de proteção dos mais fracos. Geravam ineficiência e perpetuavam, talvez, a miséria, mas propiciavam um mínimo de equilíbrio, seja internacional, seja em cada país.
Se isso for verdade, então o socialismo era na melhor das hipóteses uma modalidade de assistencialismo; os direitos sociais no Ocidente eram um tipo de suborno pago aos grupos capazes de chantagear o Estado.
Seremos agora mais desumanos porém menos falsos? O constrangedor é ver a tradição de esquerda, que já foi portadora da verdade, reduzida a uma espécie de caridade laica, desaparecendo não num estrondo, mas num lamento.

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