São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
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'Escrevi 300 canções; está bom, né?'

'Escrevi 300 canções, está bom, né?'
"Disseram que era de mau 'ghost', que eu não tinha o direito de usar a imagem dele. Que bobagem! Aquele anúncio serviu para trazer um dinheirinho para os herdeiros do Vinicius. Aí, vinham aquelas manchetes: Tom Jobim foi visto tomando chope da Antarctica."
A bronca com os brasileiros é mais antiga. Data do tempo em que ele foi para os EUA pela primeira vez, em 1962. De lá para cá, Tom passou a ter todo o reconhecimento merecido – dos norte-americanos. "O brasileiro é o pior inimigo de si mesmo", diz ele. "Mas tenho uma mágoa relativa. Não aconteceu só comigo, mas com Portinari, Niemeyer, Villa-Lobos...". Apesar de tudo, nunca pensou em sair definitivamente do país ("sou um homem tropical"). Mais: sempre que pode, veste com prazer a camisa de embaixador. "Eu tento fazer alguma coisa através da música. Mas se os turistas vêm aqui e a gente mata todos eles, prejudica um pouco."
Nostálgico, Antonio Jobim lembra um Rio diferente, do início dos 50, quando Ipanema tinha apenas um mendigo -e todo mundo o conhecia pelo nome. "Hoje, quando vou para lá de carro, dou umas dez esmolas no caminho." E cruza com caminhões cheios de soldados verdes. "É uma coisa meio ameaçadora. Mas chegamos a um ponto em que se justifica a presença do Exército. Os PMs estão ligados aos bandidos. O povo tem pavor da polícia, parece aquela música do Chico", diz, cantarolando o refrão de "Acorda, Amor" ("chame o ladrão, chame o ladrão...").
Chico Buarque é um dos poucos privilegiados a desfrutar de uma parceria com Tom nos últimos tempos. "Mas Chico é muito ocupado", diz. "Ligo para ele, descubro que foi para Paris, ou Buenos Aires." O compositor está sozinho – uma solidão que não o abandona desde a morte de Vinicius, em 1980.
"Foi uma tristeza terrível" diz, lembrando a perda do amigo. "Ele ia ser padrinho do Joãozinho, estava combinado já. Aí, de repente, ele morreu. Ficou padrinho na cabeça da gente." Na cabeça de Tom, ficou também como o único parceiro (só no último álbum, Vinicius comparece com três letras). "Eu fazia três sambas numa tarde com o Vinicius. Depois, fui obrigado a compor sozinho. Com a idade, você se fecha, não consegue mais arrumar parceiros."
Não que ele tenha realmente se isolado. Tom não é apenas idolatrado pelos artistas (a homenagem mais recente foi de Chico, que o chamou de "maestro soberano" no disco "Paratodos"): ele se mistura e se entusiasma com eles. "Eu me dou bem com todo mundo", diz, lembrando Frank Sinatra (que o convidou para cantar "Fly me to the Moon" na segunda edição de "Duets"), Madonna (para quem emprestou a partitura de "Garota de Ipanema", que ela cantou no Brasil) e alguns outros colegas ilustres.
"Caetano, Chico, Gil, Djavan, Edu Lobo, Marcos Vale... é boa a música desses garotos". Ele pára, ri meio sem jeito. "Eu os chamo assim. Os meus garotos são cinquentões." Um desses "cinquentões" assina o luxuoso release que acompanha "Antonio Brasileiro". Caetano Veloso faz referências à "sabedoria" e ao "refinamento" do mestre, concluindo que no organismo da música brasileira, "tudo passa por ele".
Camisa branca, calça e jaqueta claras, sorriso franco, olhar galanteador: em Tom, tudo é simplicidade e charme. Como será que esse senhor lida com a reputação de "gênio"? O silêncio, dessa vez, é maior.
"De uma maneira geral, as pessoas me tratam de uma maneira muito simples", começa. "Sou avesso a coisas pomposas." Mas o compositor de "Garota de Ipanema", "Águas de Março", "Luíza", "Chega de Saudade", "Desafinado" e "Eu Sei Que Vou Te Amar", entre tantas outras obras-primas, tem, certamente, uma dimensão do tamanho da sua obra. "Não sei, não sei... Eu fiz o que pude. Muita coisa eu consegui fazer, outras não. Mas escrevi umas 300 canções. Tá bom, né?"

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