São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
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'Escrevi 300 canções; está bom, né?'

O texto que segue é a íntegra, sem alterações, da reportagem que seria capa da Revista da Folha no domingo, dia 18. Tom falou à repórter Marisa Adán Gil no dia 22 de novembro, em sua casa.

Ele não quer mais olhar as moças que passam docemente a caminho do mar. Não fica mais sozinho vendo estilhaços na estrada, nem guarda seus amores para uma jovem com raios de sol nos cabelos. "Agora, o que eu quero é comprar óculos novos, olhar as garotas de longe...comprar uma bengala e andar pelas ruas despercebido, como uma pessoa comum."
Tom Jobim faz 68 anos dia 25 de janeiro. Há um mês, lançou seu primeiro disco em sete anos, "Antonio Brasileiro" (o último havia sido "Passarim", de 1987). Mais uma vez, o gênio abriu suas gavetas e deixou escapar pequenas porções de magia. Há redescobertas, como "Só Danço Samba", "Maracangalha" e a triste "Chora Coração". Cellos e sopros que lavam a alma em "Meu Amigo Radamés" e "Radamés Y Pelé". E a combinação fatal de lirismo e balanço em "Pato Preto" e "Piano na Mangueira" (parceria com Chico Buarque).
Para 95, prepara um disco com Gal Costa ("vou mostrar algumas canções, para ver se ela gosta"). Na sequência, grava com a soprano norte-americana Kathleen Battle, conclui um livro sobre a Mata Atlântica ("Visão do Paraíso") e estuda planos para uma autobiografia. Seu telefone, conta, não pára.
"Eu não mereço trabalhar tanto assim", diz o maestro, enquanto saboreia o café da manhã sentado com as pernas cruzadas sobre o sofá. Na sala de sua casa –uma construção encravada numa pedra no Jardim Botânico–, dois imponentes pianos de cauda denunciam o tipo de trabalho que se costuma fazer ali. "Quando eu era mais jovem, tudo era diferente. Ficava esperando o telefone tocar, aquela vontade de fazer, nem que fosse de graça. Tinha aquele tesão de escrever. Depois, a vida vai ficando muito cheia de gente."
Shows, por enquanto, nem pensar. Tom, que sempre detestou o palco, não pode nem mais contar com o velho e bom uísque para ajudá-lo a entrar em cena –ele garante que, hoje em dia, não bebe ("só um copinho de vinho no almoço"). "Não gosto de ficar em pé num palco diante de 20 mil pessoas. É uma situação embaraçosa, todo mundo olhando para você, para o seu sapato."
A imagem da bengala não poderia ser mais exagerada. Nada quebra o ritmo de Tom. "Não, eu não quero deixar de trabalhar. Mas quero trabalhar um pouquinho, depois descansar um pouquinho." Ele desvia o olhar, faz um gesto pedindo silêncio. "Está ouvindo? É ela!" "Ela" é uma saíra de sete cores que acaba de pousar na figueira à nossa frente, exibindo suas penas verde-azuladas. Com um sorriso fascinado, começa a falar sobre os encantos da casa –o cantinho que abriga o seu descanso.
"Tem um portão aqui no fundo, você abre e já está na floresta", diz. "Tem tudo: sapo, perereca, inhambu, juriti, gavião, jacu, periquito, papagaio, paca, lagarto. Tem quatro tipos diferentes de macacos que pulam aí nas árvores. Já matamos umas quatro cobras aqui no quintal. Só não tem onça." Há também, claro, os cachorros e gatos que, vez por outra, colocam a cara na porta. "Ah, não, isso aí é coisa da minha mulher", diz. "Eu, por mim, não tinha bicho em casa. Gosto de bicho solto."
O telefone toca. É Ana Beatriz, a dona dos bichos. Os dois traçam planos para o almoço. O casal tem dois filhos: João Franciso, 15, e Maria Luiza, 7. Os outros –Paulo, 44, e Elizabeth , 36– são do primeiro casamento, com Teresa Ermani. Há ainda quatro netos, com idades entre 4 e 20 anos. Boa parte dessa gente está envolvida, de um jeito ou de outro, com a música do mestre (no último disco, Paulo e Daniel produzem, Ana e Elizabeth cantam).
"Família é bom", diz Tom, tirando mais um charuto da caixa sobre o piano –o único vício que se permite hoje em dia. "Trabalhar com eles foi um prolongamento". A última "contratada" do maestro é a filha Maria Luiza, 7. "Ela disse: pai, quero cantar com você." Acabou participando de duas faixas: a que leva o seu nome e "Forever Green". No final da gravação, a cantora precoce não resistiu e engatou um "de novo!". Não foi atendida, mas o pedido ficou registrado para a posteridade.
Se todos fossem iguais a Tom, o mundo seria um lugar muito calmo e doce. Sua fala mansa nunca se altera –nem mesmo quando chora suas mágoas. As queixas são, invariavelmente, dirigidas à imprensa (que considera mentirosa) e aos brasileiros "que são contra o Brasil".
Na memória do compositor, um episódio ficou marcado. Depois de "contracenar" com um Vinicius de Moraes já falecido em um comercial da Brahma, foi bombardeado pela imprensa.

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