São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
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A morte de Tom é como a derrubada de uma floresta

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Eu sou a consciência da paisagem que se pensa em mim, disse Cezanne uma vez. Esta frase me cai entre as lágrimas, agora que eu acabou de saber da morte do Tom.
Tom era o Brasil que se pensava nele. E a consciência da perda é enorme enquanto eu lembro de suas músicas e vejo seu rosto diante de mim, falando com a voz rouca e baixa.
Já vejo os estragos na paisagem em volta, nas árvores, no céu entre os edifícios. Algo começou a mudar, agora que ele morreu.
Os estragos já começaram. Vai se abrindo uma falta, uma falha enorme para o país. Não é a perda do grande homem só, ou de um herói, ou um ídolo.
Tom é realmente uma parte da "terra brasilis", do barranco. Há uma espécie de erosão em nosso solo, uma perda de território com a interrupção deste ciclo vital que tínhamos como uma reserva ecológica.
"O Brasil está péssimo", diziam. "Sim", pensávamos, "mas temos o Tom".
Picasso não era um grande pintor. Picasso foi uma evolução do olho humano.
Tom era mais que uma pessoa, mais que um profissional. Desligá-lo do mundo é um erro de avaliação.
A perda é material, pois não era um indivíduo compondo canções para sua glória ou nossa glória.
O país se pensava ali, se aperfeiçoava em sensibilidade, se purificava com um tratamento de água; a lagoa se clareava, Ipanema se viu através dele, as pedras, a luz da manhã.
Através dele se processaram Guimarães Rosa, Villa-Lobos, Debussy, Chopin, Ravel, Ary Barroso.
Um pedaço do país parou de funcionar, pois sua ligação com a "coisa" era muito estreita. "Você sabe, Jabor, que o urubu-caçador dorme na perna do vento...".
E aí você sentia que não era apenas um homem que contemplava o mundo. No limite fino entre nós e a natureza ele nos olhava mais do outro lado, do ponto de vista das onças, de dentro da floresta, o que lhe dava uma voz de bicho cantando, sua respiração pesada nos pianos, entre as palavras das músicas.
"Você sabe que as onças atacam por baixo, não é?" Ele via o Brasil de fora e se os artistas se querem re-ligar à natureza, Tom também queria, mas para ele o caminho era mais curto, ele estava a meio corpo para fora da água, anfíbio, guelras arfantes e nossa vida urbana perto dele ficava mais irreal, sob seus ouvidos que liam as sonoridades mentirosas que nos traíam.
Poderia ter sido um erudito, um vertical perfurante? Sim; mas nunca quis "popularizar" o profundo. Sabia que o profundo está no horizontal da natureza, sem tortuosidades.
Nunca acreditou no lado mais falacioso do moderno, esta crença de que algo "essencial" seria atingido pelo parafuso alegórico.
Esta profundidade do natural poucas vezes foi conseguida em nossa arte.
Que letra define melhor nosso destino individual e de país que "Águas de Março"?
Confesso que nunca pensei que o Tom fosse morrer. Sua morte prova que o mundo é finito, que não podemos dormir no ponto, que temos de cuidar da natureza e do país. Tom era o som do Brasil se ouvindo nele. A perda do Tom parece a derrubada de uma floresta.

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