São Paulo, sexta-feira, 9 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jobim compunha para a eternidade

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tom morreu como uma "unanimidade nacional". Que bom. Mas, se ele era um homem sem rancores, outros de nós ainda nos lembramos de como, em boa parte dos anos 70, era difícil para Tom gravar um disco no Brasil. As gravadoras desconversavam, sob a alegação de que ele "não vendia". Então, a convite das matrizes americanas dessas gravadoras, Tom ia gravar seus discos nos Estados Unidos –discos como "Tide", "Matita-perê", "Urubu" e outros. Isso feito, as filiais brasileiras das gravadoras soltavam esses discos no Brasil. E passaram os últimos 20 anos canibalizando suas faixas em antologias que, ironicamente, não param de vender.
Os que, de uns tempos para cá, aprenderam a admirar Tom também pela sua preocupação com a destruição das praias, das matas e das cidades brasileiras, acharão difícil acreditar que, por causa dessas mesmas preocupações, a esquerda levou anos tachando-o de "alienado". Quando ele cantava que "Da janela vê-se o Corcovado / O Redentor, que lindo", os intolerantes políticos espumavam como se aquela fosse uma preocupação pequeno-burguesa, e não só humana. Depois, quando a visão do Corcovado deu lugar à visão de um Sérgio Dourado, esses intolerantes entenderam –mas aí já era tarde. E não foram poucos os que continuaram resmungando contra a sua fixação pela ecologia, numa época em que poucos sabiam o significado dessa palavra.
Mas, evidentemente, a grande e insuperável importância de Tom foi musical. Ele compunha para a eternidade –e sabia disso. "Se Todos Fossem Iguais a Você" foi feita há 38 anos. "Chega de Saudade", há 36, "Garota de Ipanema", há 32, "Wave", há 28, "Águas de Março", há 24, "Lígia", há 20. E continuam frescas como o orvalho, como se tivessem nascido esta manhã. No último show de Tom a que assisti, há um ano, no parque do Ibirapuera, em São Paulo, 30 mil pessoas cantaram todas essas canções com ele. Na platéia, os mais velhos choravam, talvez por não terem conseguido manter-se jovens como elas. E os mais jovens se perguntavam quem era aquele homem, autor de canções que não eram "as deles", mas que eles pareciam conhecer antes mesmo de terem nascido.
Outro de seus últimos shows no Rio foi enriquecido por um toque fortuito, que veio pingar beleza sobre o já infinitamente belo. Foi há três anos, na praia do Arpoador. Exatamente quando Tom interpretava o "Samba do Avião", o aviãozinho da Ponte Aérea passou quase rasante sobre a multidão, piscando suas luzes. A multidão aplaudiu o avião e todo mundo ali se sentiu como se, naquele samba e naquele momento, estivesse contida toda a felicidade a que o ser humano tem direito.
Em setembro do ano passado, a respeito da homenagem que músicos internacionais prestaram a Tom no Free Jazz, escrevi aqui mesmo na Folha: "Estamos diante do maior brasileiro vivo." E não estava sozinho nessa opinião.
Quero ver inventarem outro.

Texto Anterior: A morte de Tom é como a derrubada de uma floresta
Próximo Texto: Caetano lembra 'exuberância esmagadora do talento de Tom'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.