São Paulo, sábado, 10 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A vaca sagrada

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A estrada de repente acabou e uma placa me obrigou a tomar o desvio. Depois de um trecho em terra batida adentrei uma aldeia deserta, não muito longe de Nova Déli. E mais adentraria se não houvesse obstáculo: uma vaca, com sua garupa palustre e bela, como aquela da "Invenção de Orfeu".
Ignorava se na Índia há lei do silêncio. Havendo ou não, businei à vontade, a princípio com delicadeza, depois com força, finalmente com fúria. A vaca não se mexeu.
Confiado no meu idioma pátrio, xinguei-a de filha daquilo. Exigi que saísse da frente. Nada. Apelei para os idiomas sabidos, mas a vaca, como o Itamar Franco, devia ser monoglota. E eu não saberia dizer "vá para a vaca que te pariu" em indiano.
Desci do carro. Não havia ninguém perto, parecia aquelas cidades de faroeste antes do tiroteio final. A vaca não se assustou. Olhou-me sem espanto, continuou imóvel. Confiado em sua garupa palustre e bela, tentei empurrá-la. Acho que nem cheguei a encostar minha pecadora mão em sua ilharga sagrada –na Índia, a vaca é adorada por motivos que não vem ao caso detalhar.
Eis que, de todos os lados, surgiram indianos indignados, brandindo cacetes e pedras. Cercaram-me num canto, justo no instante em que a vaca decidiu mover-se e o fez lentamente, ela e sua garupa bela e palustre.
Entregue à sanha de ferozes indianos, custei a me explicar –e eles na realidade dispensavam qualquer explicação. Quando percebi isso, puxei do bolso uma nota de 20 dólares e a turba logo se quietou. Imagino que fui ofendido em várias gerações passadas e futuras, mas não sofri violências físicas: afinal, estava na terra de Gandhi, apóstolo da não-violência.
Voltei ao carro. Logo depois da aldeia, o desvio me despejou novamente na estrada e só então percebi que havia pago uma espécie de pedágio sagrado. Infiel do Ocidente, com minhas mazelas e crimes, não poderia conspurcar com mão cristã a garupa de uma vaca palustre e bela. Pois existem deuses em todas as latitudes e intenções. E há vacas sagradas até em terras bem menos santas, como Brasília.

Texto Anterior: Uma Erundina de calças
Próximo Texto: A orquídea em flor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.