São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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Ponta de estoque

RICARDO SEMLER

O inventário demonstra –nosso estoque de pessoas geniais está difícil de repor. Nossa visibilidade no exterior, que muitas vezes é sinal de reconhecimento no contexto da humanidade, está se restringindo. Tom é exemplo, como Burle Marx o foi. Claro que Senna está incluso entre os ilustres brasileiros, o que fez deste ano um infortúnio de gênios. Cada um deles era brilhante, arrojado e inovador. Nos sobra nomes luminares como Pelé e outros apenas conhecidos em seus ramos, como Paulo Freire, João Gilberto, Nelson Freire e João Cabral de Mello Neto. São geniais.
Misturados no bolo há também os que reverenciamos por terceiro-mundismo. Há muito pouco de novo ou genial nas obras de um Jorge Amado ou um Oscar Niemeyer. Estes ícones serão profundamente velados quando falecerem, tanto quanto o jornalista Roberto Marinho, mas deixarão marcas deléveis, pela falta de originalidade e pela manutenção egoísta de espaços exclusivos. Mas no Brasil tudo acaba virando uma massaroca só. Tom Jobim serviu de propulsão para outros músicos de gênio, a exemplo de Milton, Chico e Caetano, e até para brilhantes dançarinos, como os do Grupo Corpo. Burle Marx inscreveu o Brasil na lista dos inovadores paisagistas da história. Paulo Freire será referência obrigatória no estudo da pedagogia, em qualquer lugar do mundo. Enquanto isto, Niemeyer ficará como seguidor menos inspirado de Le Corbusier, e o Amado uma figura de folclore regional, um Vargas Llosa com 30% de desconto, que em si já é um Gabriel Garcia Marquez com 60% de desconto. Não é por menos que a inflação está caindo. Roberto Marinho, então, nem se fala. É difícil citar um nome que tenha causado tanto estrago e atraso ao país quanto este, mas o luto será geral.
Uma das definições da genialidade com propósito é a de servir de fonte inesgotável de inspiração. A pergunta vexante é se a fama é necessária para que esta inspiração se concretize. Um Sebastião Salgado, entre os melhores fotógrafos do mundo, é muito mais conhecido lá fora do que aqui. O mesmo é verdade em relação ao cavaleiro Nelson Pessoa. O próprio Nelson Freire é renomado especialista em compositores românticos, mas faz apenas dois dos seus 90 concertos anuais no Brasil. Fui a um destes na semana passada num pequeno auditório, que estava semi-vazio.
Tom deixa um lacuna que depende de nossa capacidade de discernimento para ser preenchida. A minha geração ainda não mostrou sua cara, não é possível identificar os gênios dos quais vamos, desesperadamente, precisar. Onde estão os arquitetos, escritores, educadores, artistas plásticos e compositores que irão repor o estoque? Precisa-se, e logo. Candidatos devem olhar para o céu, e para aquela estrelinha que tem a cara do Tom, despejar seus currículos com convicção. O almoxarifado central agradece.

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