São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma oração aos velhos

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

Os escritores, como os oficiais das Forças Armadas, são promovidos seja por merecimento, seja por antiguidade. Alguns impõem-se ao público e aos seus pares em poucos golpes de audácia e talento. São os escritores natos, de vocação imperiosa e irresistível. Outros –e talvez seja o meu caso– crescem na estima da classe intelectual graças à continuidade de um trabalho de muitos e muitos anos. Escrevem por força do ofício, mas é possível que preferissem permanecer como leitores inveterados.
Quando revejo a minha vida, que já vai longa, mais longa do que eu esperava, passam-me pela memória várias imagens, as mais antigas às vezes mais nítidas do que as recentes. Verifico, então, não sem surpresa, que fiz muitas coisas com as quais não contava e deixei de fazer outras tantas que planejara, é verdade que no plano superficial da vontade, não no das forças profundas da personalidade.
Na minha meninice sonhei muito em ser poeta, como Gonçalves Dias, Castro Alves e Olavo Bilac, vozes que ouvi recitadas antes mesmo de começar a lê-las. Depois, já na adolescência, na hora difícil de optar por uma profissão, desejei ser médico, como meu pai, casando de certo modo clínica e literatura. Já no fim dos estudos superiores, na falta de melhor, tentei ser professor de filosofia, matéria que, apesar de não ter "la tête métaphysique", como dizem que os franceses não têm "la tête épique", ensinei por bastante tempo em colégios estaduais, sem qualquer proveito para Aristóteles ou Kant, mas com imenso prazer pessoal meu e alguma aquiescência dos alunos. Conservo mesmo, entre os meus guardados afetivos, um presente que recebi deles: uma modesta espátula de metal, com estes simples dizeres: "Obrigado, 3º clássico, 1964". Foi uma homenagem inesperada e singela, que me tocou fundo –como esta–, porque, afinal, ninguém é de ferro.
Pois bem, durante todos esses anos de formação, em que vamos descobrindo aos poucos, meio por acaso, o que somos e a que viemos, ia-se desenhando dentro de mim outro perfil. A literatura, passada um tanto para trás, por ser julgada menos fundamental que a filosofia e as ciências sociais –estávamos entre 1930 e 1940, na época das grandes decisões entre direita e esquerda– a literatura, dizia, acabou por revelar-se a minha única e verdadeira profissão, perdendo ela em parte o prestígio amador e prazerosamente gratuito que até então possuía. Tive de escrever por obrigação e não somente por prazer. Há mais ainda. Uma revista de jovens, que reunia um grupo de amigos, deu-me, dentro da literatura, um espaço reservado, uma parte determinada, aquilo que se chamava seção fixa –a do teatro. Estava definido para sempre o meu futuro, no jornalismo e na universidade. O que fora até essa altura divertimento artístico, "hobby" intelectual, atividade circunstancial e descompromissada, tornar-se-ia o centro de minhas preocupações enquanto ser pensante e escrevente.
Durante os 50 anos seguintes –pasmem todos, são mesmo 50 anos, até um pouco mais–, prossegui, como colega obediente, no caminho que os meus amigos –amigos do coração, é verdade– haviam escolhido para mim, certamente me conhecendo melhor do que eu mesmo me conhecia. E confesso, revendo agora esses cinco decênios, que tenho certo orgulho em haver contribuído, com a minha geração e na medida de minhas forças, para que o teatro saísse da posição humilhante de primo pobre que ocupava entre as artes literárias brasileiras.
Posso dizer, igualmente, que a literatura não me decepcionou, nem pelo lado prático, ajudando-me a viver, nem pelo aspecto teórico. A minha primeira lição poética, recordo com prazer, recebi-a muito cedo, em 1930, através das palavras borbulhantes de Martins Fontes, médico amigo do meu pai, poeta parnasiano, discípulo dileto de Bilac e o homem mais fervilhante que jamais conheci. Plantado no meio da nossa sala, ele ensinou, a todos da família, que para se tornar poeta é necessário acostumar-se ao ritmo, metrificando com rigor até rol de roupa. Quanto à rima, tratava-se de gênero de absoluta primeira necessidade poética. E deu um exemplo. Ele tinha um amigo que morava na rua Tamandaré, 77. Pois já o intimara: ou ele morava na rua Tamandaré Setenta e Sé ou na rua Tamandarete Setenta e Sete. Aquela meia rima, aquela rima incompleta, é que não se podia admitir. A vida, como o verso, tinha de rimar.
Alguns anos mais tarde, em 1935, levado pelas mãos corajosas e abelhudas de Paulo Emílio Salles Gomes, entrei em contato pessoal com os modernistas de primeira geração, com destaque especial, naturalmente, para Mario de Andrade e Oswald de Andrade. Percebi então, com espanto, que nada do que eu sabia sobre eles era verdade. Não eram irmãos e não eram loucos, embora habitassem uma paulicéia desvairada que ficava fora dos meus limites urbanos, centrados sobre a Praça do Patriarca e o bairro de Higienópolis. E Oswald, por falar nisso, não tinha nenhum filho chamado Rolando Pela Escada Abaixo ou Lança-Perfume Rodo Metálico. Os fatos estavam ainda presentes e a lenda já os envolvia. A Semana de Arte Moderna, encerrada em 1922, e tida como brincadeira de lunáticos, começava a crescer até abarcar todo o horizonte artístico nacional.
Tive de afinar de novo o meu ouvido, lendo como poesia muitas palavras esparsas pela página que se me afiguravam prosa, aliás um tanto solta e desconexa. E troquei a partir dos alicerces as minhas concepções sobre a arte. Conto, decretara um dos mestres do modernismo paulista, é tudo aquilo que o autor intitula conto. Um poeta de Minas, dos melhores, se não o melhor, colocava ao pé do verso a sua chave-de-ouro, posta curiosamente entre parênteses: o autor desconfiava que havia escrito um poema. Em outras ocasiões poéticas, advertiu que se o verso dele não dava certo, a culpa cabia ao ouvido do leitor, que entortara. Em relação à rima, mostrava-se drástico: Raimundo seria uma rima mas não uma solução para o mundo. O mundo escapava assim ao domínio da poesia: talvez ele também não rimasse.
Acabei por amar apaixonadamente essa poesia esquiva, oblíqua, irônica e auto-irônica, que não se consumava sem a ruminação intelectiva e imaginativa do leitor. A verdade é que, guiado por uma geração mais velha e mais sábia do que a minha, aprendi a aceitar todos os ritmos, inclusive os dissolutos, e a apreciar devidamente o lirismo dos bêbados e as sintaxes de exceção.
Não sei mesmo se a minha formação, no que possui de mais básico, não ficou por aí, por volta de 1940, quando eu tinha vinte e poucos anos. Vi passar a seguir muita água, revolta ou sossegada, por baixo da ponte da literatura. Já naquela época existiam pelo menos quatro "ismos" sediciosos e insolentes: o futurismo italiano, o expressionismo alemão, o dadaísmo suíço –logo onde foi ele nascer– e o surrealismo francês. Mas de certo modo todos haviam desaguado juntos nas ondas mais remançosas e menos agitadas do Modernismo de meados do século, que os acolhia como filhos aos quais se perdoam os excessos da juventude.
Resumir o que sucedeu depois em questão de vanguarda, relembrar a cadeia de "ismos" surgidos entre 1944 e 1994, desde os filosóficos, como o existencialismo, até os literários, como o concretismo, desde os pictóricos, como o abstracionismo, até os da crítica, como o estruturalismo, seria exceder de muito a paciência de vocês e o intuito deste relato, que se deseja finito, pessoal e nostálgico. Basta marcar a minha perplexidade face aos dois últimos "ismos" que registrei: o desconstrucionismo e o pós-modernismo. Significarão eles porventura que o meu amado século 20, que vivi quase em sua inteireza, já terminou e que temos de desmanchar tudo que edificamos com tanto custo? Felizmente a minha idade, se me permite ainda fazer perguntas, desobriga-me de lhes dar respostas. Liberado pela velhice, já sem ter a preocupação de parecer moderno, não tendo mais a obrigação moral e profissional de rever periodicamente os meus conceitos e reciclar a minha bibliografia, posso finalmente dar-me ao luxo de ser apenas eu mesmo. Ou melhor, como diria Ortega y Gasset, "eu e minha circunstância". No caso, eu e os meus amigos. Obrigadíssimo pela presença e pelas palavras amáveis.

Texto Anterior: Visões maniqueístas da prosa ligeira
Próximo Texto: Documentário sobre a loucura remove os pilares da objetividade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.