São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 1994
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Documentário sobre a loucura remove os pilares da objetividade

OLGÁRIA MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

À distância da apologia de uma "gaia loucura", precocemente transformada em doutrina por uma certa leitura de Foucault, "Dizem que Sou Louco", de Miriam Schnaiderman, tampouco faz seu elogio. Nem gênero jurídico, nem atitude de veneração. Não se trata, também, de produzir um "devaneio metódico", como se fosse possível delirar com sensatez.
O filme constitui um espetáculo em seu sentido primeiro: "Espetáculo e especulação possuem a mesma origem e estão ligados à idéia do conhecimento como operação do olhar e da linguagem (...), do fazer ver e do deixar-se ver" (Marilena Chaui, aula inaugural na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1993).
Neste sentido, o filme nos dá a ver, e ver é já uma maneira de pensar. A um só tempo espectadores e atores, essa humanidade alojada no mundo urbano é oracular e profética: falas, por vezes incompreensíveis, mais revelam que escondem; nossa tradição clássica, ou pior, racionalista, nunca conferiu cidadania ao louco, esse nunca se constituiu como sujeito de um saber, mas como objeto de um poder. Algo inquietante abalava os alicerces da razão autoconfiante: se esta se concebe como a linguagem da clareza e da distinção, o louco é, por natureza, aquele a dizer o confuso, e a confusão, sabemos, é contagiosa.
Figura emblemática no filme: o louco, com sua túnica santa ou de cruzado em busca do Santo Graal, armadura de malhas medievais, remetendo a um outro espaço e outro tempo, ou melhor, removendo esses pilares do conhecimento objetivo. Nele se sobrepõem o rabino, o profeta, o sábio, o iluminado: "o que tenho", diz, "são problemas espirituais, vozes que aparecem e tomam a mente, que manipulam".
Visionários e videntes convertidos em doentes, são eles verdadeiros metafísicos. Em meio a locuções inarticuladas, ouvimos sem no entanto ver: "tem gente que vê a árvore mas não tem conhecimento do que é a árvore, as flores, a madeira, o que é a madeira viva ou morta".
Se as imagens não são plenamente discerníveis e se mesclam, também essas exigências anônimas buscam a si mesmas em si, fora de si, ao redor de si, nas coisas, objetos: "dizem que sou maluco, louco; já passei da academia de louco, saí de lá, mas não abandono ninguém."
O filme é maior que ele mesmo: não é a cidade que acolhe sua "terceira margem", mas é o louco que dá a conhecer a cidade. É ele que a revela como fator de conhecimento e autoconhecimento: "roupa íntima atrai vingativa criatura". Formulação parnasiana, a desse interlocutor-intransitivo que, por vezes, se faz filósofo: se nos damos a conhecer, estaremos fragilizados, pois o outro, sabedor de nossas fraquezas, atuará sobre nós.
Seres produtores de metáforas, tomados pela "doença sagrada", a "hiera nosos" dos gregos, só pecam por colocá-las fora do lugar; erram, por assim dizer, no cálculo do espaço e do tempo. Não fosse isso, não ecoariam em suas construções a interrogação de Montaigne: "que sais-je?" (que sei eu?), ou melhor, "qui suis-je?" (quem sou eu?), para a qual, mostra o filme, não há resposta definitiva, pois "a gente se vale da loucura", ouvimos, "para fazer os alicerces do futuro".
Fronteira delicada que a fita mostra: a do real e do imaginário, do possível e do impossível, da vida e da utopia. Transcendendo a dor, o documentário não propõe interpretações, conclusões, sentenças. Preserva o limiar insondável que separa o homem comum e o louco, respeita o enigma.

DIZEM QUE SOU LOUCO. Direção Miriam Schnaiderman. Realização Miriam Schnaiderman, Video Track e Estação Cooperativa de Acompanhamento Terapêutico. Edição de Cássio Maradei, Adelson Munhoz e Miriam Schnaiderman. Exibição no dia 15, às 20h30, no MIS (Museu da Imagem e do Som, av. Europa, 158, São Paulo), durante o Festival de Cinema Cultural Paulista

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